quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O DIÁLOGO DE ALLAN KARDEC COM O SEU TEMPO

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Fonte da imagem: http://www.paracleto.net/allan_kardec.php

    Excelente texto extraído do primeiro capítulo do livro "Pedagogia Espírita", de Dora Incontri.

"1.5 – O Espiritismo 

Um evolucionismo individuado


Exatamente no mesmo mês e ano, abril de 1857, em que Spencer lançava a obra ON PROGRESS, em Londres, Allan Kardec publicava O LIVRO DOS ESPÍRITOS em Paris. Tratava­-se, tanto quanto a primeira, de uma obra evolucionista. Numa das questões propostas por Kardec, há a seguinte afirmação: “É assim que tudo serve, tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo”. 94

Era também, evidentemente, um livro espiritualista, mas Kardec advertia ser um tipo específico de Espiritualismo: “A Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo  invisível. Os adeptos do  Espiritismo serão os espíritas ou, se quiserem, os espiritistas. Como especialidade, O LIVRO DOS ESPÍRITOS contém a Doutrina Espírita; como generalidade liga-­se ao Espiritualismo, do qual representa uma das fases. Essa a razão porque traz sobre o título as palavras: Filosofia Espiritualista”. 95 O próprio livro era fruto dessa relação, pois a obra inteira está em forma de diálogo, com questões formuladas por Kardec e respostas dos Espíritos, obtidas por diferentes médiuns. 96

Depois desta obra, vieram outras, na seguinte sequência: O  LIVRO  DOS MÉDIUNS (1861), O EVANGELHO  SEGUNDO  O ESPIRITISMO (1863), O CÉU E INFERNO (1865), A GÊNESE E OS MILAGRES SEGUNDO O ESPIRITISMO (1867) e, depois da morte de Kardec, textos esparsos seus, reunidos pela esposa e por amigos, em OBRAS PÓSTUMAS (1869).

Assim como seria impossível examinar o século XIX em profundidade no espaço a que nos propomos, é impensável enfeixar o Espiritismo inteiro nos traços gerais que pretendemos delinear. Em verdade, interessa­-nos aqui em primeira instância mostrar esta doutrina como uma tomada de posição ante esses questionamentos, que focalizamos como sendo constitutivos do seu século. Faremos aqui um primeiro esboço do diálogo de Kardec com o seu tempo.

É preciso para tanto estabelecer algumas premissas que constituem a própria especificidade do Espiritismo, sob pena de estarmos desfigurando a sua proposta. Em primeiro lugar, Kardec avisa constantemente que o Espiritismo não é obra sua, um sistema filosófico pessoal, mas um sistema livre, de pesquisa e de cooperação entre homens e Espíritos, para a busca da verdade. “Todas as doutrinas filosóficas são obra de homens, cujos ideais são mais ou menos grandes, mais ou menos justos: todas têm um chefe, em torno do qual se reuniram outros homens, partidários do  mesmo  ponto de vista. Quem é o autor do  Espiritismo? Certo ou errado, quem imaginou  essa teoria? É verdade que se procurou  coordená-­la, formulá­-la, explicá-­la. Mas a ideia primeira, quem a concebeu? Ninguém. Ou melhor, todo mundo, porque todos puderam ver, e aqueles que não viram foram os que não o quiseram ou quiseram a seu modo, sem romper o círculo de suas ideias preconcebidas, o que os fez ver e julgar mal. O Espiritismo decorre de observações que cada um pode fazer, que não constituem privilégio de ninguém, o que explica a sua irresistível propagação. Não é o produto de nenhum sistema individual, circunstância que o distingue de toda as outras doutrinas filosóficas”. 97

Outra característica própria desta doutrina é pois, que, embora se pretendendo ciência e filosofia, é uma ciência que qualquer indivíduo  pode experimentar e, nesse sentido, O  LIVRO  DOS MÉDIUNS  é um manual para tais experimentações e uma filosofia, acessível e simples, deixando propositalmente de lado a linguagem hermética de outros sistemas filosóficos. A intenção de Kardec era democratizar a teoria e a prática espíritas: “…desde o princípio, importava que ela fosse aceita pelas massas, porque a opinião das massas exerce uma pressão que acaba fazendo lei e triunfando das oposições mais tenazes. Eis por que me esforcei em simplificá-­la e torná-­la clara, a fim de a por ao alcance de todos, com o risco de a fazer contestada por certa gente quanto ao título de filosofia, por que não é bastante abstrata e saiu do nevoeiro da metafísica clássica”. 98

Eis aí um indício iluminista da postura de Kardec –  o  de aceitar  uma racionalidade imanente em todos seres humanos, que está capacitada a julgar por si mesma fatos e teorias. Uma atitude anti­elitista, bem diversa do conservadorismo apontado nos espiritualistas tradicionalistas de sua época. Kardec se insere aí no projeto de emancipação iluminista, mas adotando a democratização de um conhecimento que um Condorcet, por exemplo, teria chamado de supersticioso. A intenção é racionalizar e divulgar a metafísica, tornando­-a ao mesmo tempo científica e popular.

Postos estes parâmetros um tanto inéditos, por unirem características consideradas antinômicas —  filosofia resultante de reflexão humana e inspiração espiritual, e, ciência e filosofia populares, tratando de um objeto metafísico  —  analisemos então os princípios que se põem como constitutivos desta doutrina e que se propõem ao século em que nasceram.

O Espiritismo é evolucionista e está impregnado do mesmo  otimismo já apontado em diferentes correntes dos séculos XVIII  e XIX, mas trata­-se de um evolucionismo inédito até então, porque se dá dentro dos quadros do Espiritualismo cristão. É verdade que a evolução, como em outras doutrinas, é reconhecida como lei, mas ela está condicionada à liberdade humana e, mais do que isso, à liberdade individual.

Quem evolui, antes de tudo, é o Espírito, mas o Espírito concebido como alma individual, transcendente ao corpo, que vai construindo seu próprio destino e seu aperfeiçoamento no decorrer das existências sucessivas. O finalismo evolutivo não é histórico, não é terrestre, não é social…  é cósmico, projeta-­se para a transcendência pessoal e imortal. Todos os Espíritos tendem à perfeição.

Isso redimensiona o projeto de emancipação humana, que vinha sendo buscado até então: não se trata apenas de emancipar o homem enquanto ser social e político, restituindo-­lhe o direito e o dever de direcionar sua vida, instruir-­se e participar das conquistas da ciência e da cultura humanas… Trata­-se de emancipar também o homem como ser imortal, que não depende de uma salvação externa, mas que tem o  direito e o dever de construir seu  destino espiritual, através de muitas vidas.

Raras teorias valorizam tanto o ser individual e a liberdade humana quanto o Espiritismo. Aquele esvaziamento do ser, que se estava a realizar no século XIX, seja pela noção de Espírito absoluto  dos idealistas, seja pela noção meramente biológica e social dos materialistas, encontra uma contrafação por parte do movimento espírita. O ser humano é Espírito e esta —  como já vimos —  para o Espiritismo não é uma categoria hipotética ou  uma tese especulativa, mas o resultado de observação científica, e portanto, uma certeza de certa forma assentada.

Com isso, o evolucionismo espírita adquire contornos não encontráveis em nenhum dos outros aspectos do evolucionismo do  século  XIX. Não descarta o evolucionismo biológico, aliás se antecede a ele, porque O LIVRO DOS ESPÍRITOS foi lançado um ano antes da divulgação das teorias darwinistas e ao mesmo tempo se alia a essa corrente, por intermédio de Russel Wallace, que participou do movimento espírita na Inglaterra. Mas mostra o princípio inteligente germinando na matéria, de modo que o evolucionismo se torna psíquico­biológico: “O Espírito não chega a receber a iluminação  divina que lhe dá, juntamente com o livre arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, sem haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra de sua individualidade”. 99 A frase que se tornou célebre entre os espíritas brasileiros e que é atribuída a Léon Denis, sucessor de Kardec, resume bem este princípio: “A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita­-se no animal e desperta no homem”. Eis um evolucionismo que teria reflexos posteriores em Bergson e Theilhard  de Chardin. 100

Não se subtrai o Espiritismo tampouco a um evolucionismo social, mas não determina uma meta rígida, nem esboça uma utopia acabada de onde deve chegar a sociedade. Semelhante à proposta anarquista, é otimista quanto ao futuro libertário da humanidade, mas não sistematiza uma ideia fechada de sociedade ideal.

Herculano Pires apreende bem a questão: “Kardec nos indica a necessidade do esforço contínuo do homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A passividade diante das leis naturais caracteriza as formas inconscientes de vida. A consciência está submetida a uma nova lei, em plano mais alto: a lei do esforço próprio, a lei do trabalho e da atividade livre, que a fará progredir a si mesma e ao todo a que pertence, a coletividade. (…) Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do seu  comentário ao número 783  de O  LIVRO  DOS ESPÍRITOS: ‘O homem não pode conservar-­se indefinidamente na ignorância, pois tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinalou. Ele se instrui pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações.’ 
A renovação do homem implica a renovação social — mas desde que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo esta, aliás, a sua indeclinável obrigação espírita”. 101

Vê­-se que do conservadorismo social do espiritualismo hegeliano  ou  de Victor Cousin, o Espiritismo está longe. Aliás, na REVISTA ESPÍRITA, Kardec dialoga com saint­simonianos, com fourieristas e em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, há passagens surpreendentes sobre temas polêmicos como  igualdade, propriedade, trabalho…  Traços de um certo socialismo cristão 102 aparecem aqui e ali. Por exemplo: “O direito de viver confere ao homem o direito de ajuntar o que necessita para viver e repousar, quando não mais puder trabalhar? — Sim, mas deve fazê­lo em comum, como a abelha, através de um trabalho honesto, e não ajuntar como um egoísta”. 103 E mais adiante: “Só há uma propriedade legítima, a que foi adquirida sem prejuízo para os outros”. 104 Ou: “A desigualdade das riquezas não tem sua origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do que a outros? — Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo?”  105 E ainda: “Há, entretanto, uma medida comum de felicidade para todos os homens? — Para a vida material, a posse do necessário; para a vida moral, a consciência pura e a fé no futuro”. 106 E, por último: “Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de fome”. 107

O evolucionismo espírita se resume pois nos seguintes princípios: o princípio inteligente veio se desenvolvendo nos reinos inferiores da criação e atinge a individuação no plano hominal. A partir daí, o ser  adquire liberdade e responsabilidade moral e tem por meta intrínseca o aperfeiçoamento incessante no tempo e no espaço. Mas esse aperfeiçoamento não se dá de forma isolada. Indivíduo e coletividade interagem dialeticamente na obra da evolução e a ideia de uma sociedade mais justa e igualitária deve mover a ação social do indivíduo consciente.

Entretanto, como veremos, a ação social mais eficaz, segundo o Espiritismo, é justamente a educação.

Uma ciência não­ positivista

Kardec partilha sem dúvida da confiança na ciência, característica de seu tempo, que tem reflexos ainda hoje. E como já vimos, pretendeu estender o método experimental à análise do Espírito, por  meio do estudo dos fenômenos mediúnicos. 108

Mas o reverso também é verdadeiro: Kardec critica a ciência de então, por seus pressupostos gratuitamente materialistas e procura incorporar na aquisição da verdade, o método da reflexão filosófica e da revelação religiosa. Criticando seus opositores, diz ele: “Toda a doutrina (materialista) está nestas palavras; a profissão  de fé é clara e categórica. Assim, porque Deus não pode ser demonstrado por uma equação algébrica e a alma não é perceptível com o auxílio de um reativo, é absurdo crer em Deus e na alma. Todo discípulo da ciência deve, pois, ser ateu e materialista. Mas para não sair da materialidade, a ciência é sempre infalível em suas demonstrações? Não se viu tantas vezes dar como verdades o que mais tarde se viu serem erros, e vice e versa?” 109

Para Kardec, o materialismo científico de seu  tempo é uma crença apriorística e não resultado de observação. Sua apreciação  lembra a análise de Thomas Kuhn, um século mais tarde, a respeito do  paradigma, como sendo um conjunto de crenças que envolvem uma comunidade científica: “Um elemento aparentemente arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos, é sempre um ingrediente formador das crenças esposadas por uma comunidade científica específica numa determinada época”. 110

Kardec assume explicitamente, portanto, aquilo que os positivistas muitas vezes não admitiam: a relatividade do conhecimento científico e, ao mesmo tempo, que toda ciência tem um pressuposto filosófico. O pressuposto, por ele admitido, de uma ordem universal, que garante o conhecimento e a previsibilidade científica é decorrência de uma dinâmica divina no universo. Na melhor tradição de Kepler e Galileu, Bruno e Descartes, afirma ele que: “A harmonia que regula as forças do Universo revela combinações e fins determinados, e por isso mesmo  um poder inteligente. Atribuir a formação primária ao acaso seria uma falta de senso, porque o acaso é cego e não pode traduzir  efeitos inteligentes. Um acaso inteligente já não seria acaso”. 111 Intencionalmente, assim, Kardec não dissocia um olhar empírico da natureza de uma visão filosófica teísta, referindo ambas a uma racionalidade única, que torna o todo coerente e inteligível.

Outra atenuação do cientificismo impressa por Kardec no Espiritismo está no fato de reconhecer a influência da subjetividade humana na apreensão da ciência. “Quando a ciência sai da observação  material dos fatos e trata de apreciá­-los e explicá­los, abre­se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um constrói seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e sustenta encarnecidamente”. 112

Sentindo na própria pele o preconceito contra a análise de uma nova ordem de fenômenos que ele pretendia pesquisar, comenta em relação aos cientistas resistentes: “Arriscam-­se a ver os seus nomes aumentando a lista dos ilustres negadores das ideias novas, inscritos ao lado dos membros da douta assembléia que, em 1752, recebeu com estrondosa gargalhada o relatório de Franklin sobre os pára­ raios, julgando­-o indigno de figurar entre as comunicações em pauta, e daquela outra que fez a França perder as vantagens da navegação a vapor ao declarar o sistema de Foulton um sonho impraticável. Não obstante, eram questões da alçada da Ciência. Se essas assembléias que contavam com os maiores sábios do mundo, só tiveram zombaria e sarcasmo para as ideias que ainda não compreendiam e que alguns anos mais tarde deveriam revolucionar a Ciência, os costumes e a indústria, como esperar que uma questão estranha aos seus trabalhos possa ser melhor aceita?” 113

Isto também nos remete a Kuhn: “A ciência normal não tem como objetivo  trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias, frequentemente mostram­-se intolerantes para com aquelas inventadas por outros”. 114

Kardec aponta de maneira mais contundente ainda o dogmatismo  dos materialistas: “Os fanáticos da incredulidade fazem num sentido o que os fanáticos da fé fazem em outro. Então estes dizem: Para ser segundo Deus é preciso crer em tudo o que cremos; fora de nossa fé não há salvação. Os outros dizem: Para ser segundo a razão, é preciso pensar como nós, não crer senão no que cremos; fora dos limites que traças à crença nem há liberdade, nem o bom senso, doutrina que se formula por este paradoxo: Vosso espírito só é livre com a condição de não crer no que quer, o que significa para o indivíduo: Tu és o mais livre de todos os homens, com a condição de não ir mais longe do que a ponta da corda a que te amarramos”. 115

Pela posição original de sua pesquisa, podemos interpretar a atitude de Kardec como a proposta de um novo paradigma (dentro do conceito de Kuhn), por lidar com uma nova ordem de fenômenos, constituir uma metodologia própria para interpretá­-los e, afinal, por  estar essa análise dentro de uma visão de mundo abrangente. Esse paradigma tem outros partidários nos séculos XIX e XX, mas ainda não alcançou o status de ciência oficial.

Mas o que indica ainda o espírito científico de Kardec é a sua posição em relação ao próprio Espiritismo, assumindo-­o como uma doutrina progressiva: “…ela é e não poderia deixar de ser essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Por sua essência faz aliança com a Ciência que, sendo a exposição das leis da natureza em uma certa ordem de fatos, não pode ser contrária à vontade de Deus, o autor dessas mesmas leis. (…) O Espiritismo só define, pois, como princípio absoluto aquilo que demonstrou  através da evidência, ou  aquilo que ressalta logicamente da observação. Ligado a todos os ramos da economia social, aos quais empresta o apoio de suas descobertas, ele assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, que atingiram o estado de verdades práticas e que saíram do domínio da utopia. Sem isso ele se aniquilaria a si mesmo; deixando de ser o que é, desmentiria sua origem e sua finalidade providencial. O Espiritismo, caminhando com o progresso, jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe mostrassem que está errado em algum ponto, ele se modificaria nesse ponto. Se uma nova verdade for revelada, ele a aceitará”. 116

Uma religiosidade natural e universal

A caracterização do aspecto religioso do Espiritismo é bastante delicada, a ponto de provocar polêmicas ainda hoje, entre os seus adeptos. Já Rousseau  e Pestalozzi, que certamente influenciaram Kardec neste sentido, haviam proclamado uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome, individual, e muito mais orientada para a ética do que para o culto. 117

Ao abrir a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Kardec delimitou a sua atuação à pesquisa científica, excluindo de sua alçada questões políticas e religiosas. Logo na sua fundação, advertia: “A sociedade a que vos referis tem seu objetivo expresso no próprio título; a denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de nenhuma seita; tem ela um caráter tão diverso que os seus estatutos proíbem tratar de questões religiosas; está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, na verdade, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos resultantes das relações entre o mundo visível e o invisível; tem seu presidente, seu secretário, seu tesoureiro, como todas as sociedades; não convida o público às suas sessões, nas quais não há discursos nem qualquer coisa com o caráter de um culto qualquer”. 118

É preciso considerar, porém, que a política vigente era a de Napoleão III  (que depois se interessaria pessoalmente pelos fenômenos espíritas). Neste contexto, eram proibidas as reuniões de caráter político e religioso. Para o funcionamento da Sociedade Parisiense foi necessária a autorização da polícia. Até que ponto as reticências iniciais de Kardec quanto a subtrair  do Espiritismo  qualquer  caráter religioso tinham por causas o clima de repressão e o desejo de não chocar de frente os preconceitos católicos da sociedade, é uma questão que se põe.

Por outro lado, como se tratava de um novo conceito de religião, quando Kardec nega ser o Espiritismo uma religião, está negando seus modelos tradicionais. Veja­-se que ele recusa, mas ao mesmo tempo aponta mais do que o caráter religioso, o caráter cristão desta doutrina: “Assim, pois, o Espiritismo se fundamenta em princípios gerais independentes de toda questão dogmática. É verdade que ele tem consequências morais, como todas as ciências filosóficas. Suas consequências são no sentido do Cristianismo (…). O Espiritismo não  é, pois, uma religião. Do contrário teria seu  culto, seus templos, seu ministros. Sem dúvida cada um pode transformar suas opiniões numa religião, interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande distância e penso que seria imprudente seguir tal ideia”. 119

Tudo isso se explica porque o Espiritismo propõe um conceito de religião ecumênica, que transcende os particularismos de culto e dogma, para apanhar o que há de comum na maior parte das religiões 120 Kardec reitera mesmo a ideia de que a doutrina dos Espíritos seria um coadjuvante de todas as religiões, provando os pontos fundamentais que a maioria sempre abarcou. A sua postura logo de início era esta: “Melhor observado desde que se vulgarizou, o  Espiritismo vem lançar luz sobre uma porção de problemas até aqui insolúveis ou  mal resolvidos. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião. E a prova é que conta como aderentes homens de todas as crenças, os quais, nem por isso, renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, menos materialistas e ateus, porque estas ideias são incompatíveis com as observações espíritas”. 121

No desenrolar das ideias e das publicações, porém, Kardec foi tocando cada vez mais em pontos que eram do domínio das religiões.

E mais, evidenciou­-se com a publicação de O  EVANGELHO SEGUNDO  O ESPIRITISMO  e de O  CÉU E  INFERNO, que, embora não o confessasse, ele estava fazendo uma nova leitura do Cristianismo. A reação da Igreja não tardou. Padres, bispos, cardeais e escritores católicos lançam artigos, livros, excomunhões…  A REVISTA ESPÍRITA traz numerosos traços da polêmica com a Igreja 122

Logicamente, desde que a reencarnação substituía o dogma das penas eternas, que a comunicação dos mortos era entendida e praticada como algo natural, estava­-se naturalmente entrando em contradição com dogmas enraizados da Igreja, tornando cada vez mais inviável ser espírita e ser católico ao mesmo tempo.

Sem procurar escândalos e confrontos muito abertos, mas de maneira firme e irredutível, Kardec foi realizando a crítica das religiões e do próprio Cristianismo, sem contudo ferir-­lhe a essência, ao invés, reforçando-­a e buscando lhes dar bases científicas. Diz ele: “Infelizmente, em todas as épocas, as religiões foram instrumentos de dominação”  123

Mas acrescenta: “Apesar  dos erros de suas doutrinas, nem por isso deixaram de impressionar os espíritos, semeando assim os germes do progresso que, mais tarde, deveriam brotar, ou que desabrochariam um dia à luz do Cristianismo. É, portanto, injustamente que lhes lançam seu anátema em nome da ortodoxia, pois dia virá em que todas essas crenças —  tão diversas na forma, mas que, na realidade, se baseiam no mesmo princípio fundamental: Deus e a imortalidade da alma — se fundirão em um todo único, grande e poderoso, quando a razão triunfar sobre os preconceitos”. 124
Quando no Evangelho, o Espiritismo se põe como terceira revelação, na linha judaico­cristã, Kardec estava então assumindo  plenamente o seu  caráter religioso e, mais do que isso, o estava propondo como uma nova (ou a mais antiga e primitiva)  forma de Cristianismo: destituída de poderes temporais, de cultos externos (a adoração em espírito e verdade a que se referia o Cristo), de organização institucional, de sacerdócio e intermediações entre Deus e o homem.

A prática religiosa que o Espiritismo proporá está baseada numa religiosidade natural e espontânea do ser humano: o ímpeto de adoração a um Ser superior e a prática de uma ética universal, que o Cristianismo exprime de forma mais elevada. Kardec identifica o que há de comum em todas as culturas humanas: “Todos os povos oram, do selvagem ao civilizado: aí são levados pelo instinto, e é o que os distingue dos animais. Sem dúvida oram de maneira mais ou menos racional, mas, enfim, oram. Os que, por ignorância ou  presunção, não  praticam a prece formam no mundo insignificante minoria. A prece é, pois, uma necessidade universal, independente das seitas e das nacionalidades. (…) Contestando um dogma, a gente não se põe em oposição senão com a seita que o professa. Negando a eficácia da prece, fere­-se o sentimento íntimo da quase unanimidade dos homens”. 125

Por tudo isso, Kardec incorpora de maneira sensata as críticas à religião, que vinham sendo praticadas desde o século XVIII, mas como seus antecessores, Rousseau  e Pestalozzi, não pretende negar a dimensão religiosa do homem, numa atitude elitista e prepotente, como outros de seus contemporâneos. Ao invés, busca purificá-­la dos abusos, da irracionalidade, da cegueira e dar­-lhe um direcionamento claro e universal. E nem pretende tampouco  desenraizar a ciência e a filosofia ocidentais de suas origens claramente cristãs.

Mas nesse intuito, também se alinha entre os reformadores ou heréticos, que sempre surgiram no seio do Cristianismo, querendo  resgatar a proposta do Cristo, em oposição à religião dos seus vigários."

REFERÊNCIAS E NOTAS DE RODAPÉ:

"94 KARDEC, Allan. Le livre des Esprits. Ed.cit., item 540, p. 249.
  
95 Idem, ibidem, Introdução, p. 1. 

96 Um dado interessante é que a maioria  das respostas de O  livro dos  Espíritos foram obtidas por intermédio das meninas Boudin, de 14 e 16 anos.

97 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1858, ed. cit., p. 145. Essa assertiva de Kardec se confirma no fato do Espiritismo se estender a outros países, sem a influência do codificador francês, principalmente entre os anglo­saxônicos, como já foi citado na “Introdução”. 

98 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1864, ed. cit., p. 353.

99 KARDEC, Allan. La Genèse, les miracles e les prédictions selon le Spiritisme. Ed. cit., Cap. VI, item 19, p. 78.
  
100 A respeito das relações do pensamento espírita  com a filosofia  de Bergson,  ver  meu artigo INCONTRI, Dora. Henri Bergson:  a concepção intuitiva do ser. (in: Cultura, Jornal O  Estado de São Paulo , 4/1/91).

101 PIRES, J. Herculano. Espiritismo dialético. Ed. cit., p.49.
  
102 A esse respeito,  ver  a obra COLOMBO,  Cleusa B. Ideias sociais  espíritas. São Paulo, Comenius,  1998 e também DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Matão, Casa Ed. "O Clarim", 1982.  

103 KARDEC, Allan. Le livre des Esprits. Ed.cit., item 881, p. 393. 

104 Idem, ibidem, item 884, p. 394.
  
105 Idem, ibidem, item 808, p. 361.
  
106 Idem, ibidem, item 922, p. 418.
  
107 Idem, ibidem, item 930, p. 420.

108 Essa intenção de Kardec,  citada “Introdução”, não morreu com ele. No mesmo capítulo, apontamos inúmeros cientistas do século XIX que o secundaram nessas pesquisas,  confirmando suas conclusões.  Mas, veremos ainda no próximo capítulo, outros pesquisadores atuais, que sem conhecimento do trabalho de Kardec, continuam na mesma linha de estudos. 

109 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1867, ed. cit., p. 36. 

110 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Ed. cit., p.23.
  
111 KARDEC, Allan. Le livre des Esprits. Ed.cit., item 8, p. 3.

112 Idem, ibidem, Introdução, item VII, p. XIV. 

113 Idem, ibidem, Introdução, item VII, p. XV.  

114 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 45. Esse possível diálogo entre Kuhn e Kardec merecerá um estudo à parte que faremos oportunamente.
  
115 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1867, ed. cit., p. 39.

116 KARDEC, Allan. La Genèse, les miracles e les prédictions selon le Spiritisme. Ed. cit., Cap. I, item 55,  p.  30.  Esse aspecto do Espiritismo tem provocado algumas polêmicas no movimento espírita brasileiro. De uma parte, há aqueles que, tomando a doutrina meramente como mais um sistema religioso,  assumem uma ortodoxia  dogmática e não aceitam qualquer  desdobramento além de Kardec. Há outros  que,  precipitada e levianamente,  querem aglutinar  novos princípios,  sem respeitarem os métodos  necessários de verificação e pesquisa.
  
117 Ver a esse respeito INCONTRI, Dora. Pestalozzi ­ Educação e ética. Ed. cit.  118 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1859, ed. cit. p.149.

118 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1859, ed. cit. p.149.

119 Idem, ibidem, p. 149.
  
120 A palavra ecumênica deve aqui ser  entendida em sentido amplo e dentro da proposta espírita.  Ver  mais a respeito no capítulo 6, item 6.2 “Anália Franco” e a nota 41 deste capítulo.
  
121 Idem, ibidem, p. 149. 

122 Ver,  por  exemplo,  Sermões contra  o Espiritismo (in: Revista Espírita, 1863,  ed.  cit.,  p.  40­49); Resposta do redator de La Vérité à reclamação do padre Barricand (in: Revista Espírita, 1864, ed. cit., p.  244-­245); O Cardeal Wiseman (in: Revista Espírita, 1865, ed.  cit.,  p. 213­ 216); O Espiritismo, ante a história  e a Igreja, sua origem, sua natureza, sua certeza, seus perigos, pelo Abade Poussin (in: Revista Espírita, 1868, ed. cit., p. 5­17).

123 KARDEC, Allan. La Genèse, les miracles e les prédictions selon le Spiritisme. Ed. cit., Cap. I, item 8,  p. 11.
  
124 Idem, ibidem, p.12.  125 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1866, ed. cit., p. 6

125 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1866, ed. cit., p. 6."

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:


COLOMBO,Dora Alice. Pedagogia espírita. Um projeto brasileiro e suas raízes histórico-filosóficas. São Paulo-SP, FEUSP [2001]. 









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