Fonte da imagem: http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/02/a-ciencia-confirma-o-espiritismo.html
Em Busca de uma Ciência Espírita
Gustavo Leopoldo Rodrigues Daré
“A Ciência Espírita compreende duas partes: uma experimental, sobre as manifestações físicas; outra filosófica, resultante das manifestações inteligentes” Allan Kardec (1, pág. 159)
Como demonstrado na frase que inicia este capítulo, desde o seu primeiro livro espírita (1857), Allan Kardec defendeu a tese de que o Espiritismo é uma ciência. Em O Que é o Espiritismo (1859), Kardec volta a defender que o Espiritismo: “como ciência prática, tem a sua essência nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos. Como filosofia, compreende todas as conseqüências morais decorrentes dessas relações” (2, pág. 10). Repete a mesma tese em O Livro dos Médiuns (1861): “depois da exposição do aspecto filosófico da Ciência Espírita em O Livro dos Espíritos, damos nesta obra a sua parte prática” (3, pág. 11). Em O Evangelho segundo o Espiritismo (1864) reafirma: “Espiritismo é a nova Ciência que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e suas relações com o mundo material” (4, pág. 39). Com pequena variação no discurso, mantém o mesmo conceito em A Gênese (1868): “a revelação espírita possui um duplo caráter: ela participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica” (5, pág. 15).
A opinião de que o Espiritismo é uma ciência é compartilhada por vários outros pensadores espíritas. Gabriel Delanne (1857-1924) afirma que “o Espiritismo... é uma ciência de experimentação, da qual emanam conseqüências morais e filosóficas” (6, pág. 201). Herculano Pires (1914-1979) introduz uma nova perspectiva para o problema, pois, apesar de defender o conceito científico do Espiritismo, afirma que a comprovação científica do Espiritismo foi, na prática, realizada pela Parapsicologia: “A Filosofia Espírita foi reconhecida pelo Instituto de França e figura no Dicionário Técnico da Filosofia, de Lalande. O reconhecimento da Ciência Espírita..., por causa da fragmentação destas em diversas especificações, somente agora, com o desenvolvimento da Parapsicologia, conseguiu o seu reconhecimento pelos grandes centros universitários do mundo” (7, pág. 9), e de forma categórica sentencia que “a Parapsicologia atual é simplesmente o elo de ligação da Ciência Acadêmica com a Ciência Espírita” (7, pág. 139). Interpretando estas poucas palavras de Herculano Pires, percebe-se que algo aconteceu com a Ciência Espírita, pois ela perdeu seu poder argumentativo com a sociedade científica.
Cientistas que se preocupam e estudam os fenômenos espirituais, fenômenos estes definidos como fenômenos humanos não limitados ao corpo físico, não identificam o Espiritismo como uma ciência. Podemos notar este distanciamento entre o Espiritismo e a Ciências nos textos de vários cientistas. Ernesto Bozzano (1862-1943), ao estudar a comunicação mediúnica entre vivos, apesar de utilizar termos semelhantes aos espíritas, não se identifica com a Ciência Espírita, nomeia-se membro de outra ciência, a Metapsíquica: “de tais manifestações especiais já se ocuparam diversos eminentes cultores das pesquisas metapsíquicas, e Alexandre Aksakoff tratou muito amplamente do assunto, na sua obra Animismo e Espiritismo” (8, pág.12). Karl Muller, em suas pesquisas sobre reencarnação contou com auxílio de espíritas, agradecendo a colaboração do brasileiro Dr. Inácio Ferreira (9, pág. 17). Conheceu o Espiritismo e a obra de Allan Kardec, a qual julgou com admiração: “Kardec tentou elucidar muitos detalhes. O seu livro é realmente melhor e mais compreensivo que os posteriores ensinos do Ocultismo, Rosacrusianismo, Teosofia de Madame Blavatsky, Antroposofia, etc” (9, pág. 40). Porém, Karl Muller não classificou o Espiritismo como uma Ciência, mas sim como “uma doutrina compreensiva da reencarnação publicada por Allan Kardec”, e completa, “Gabriel Delanne, inclinado fortemente para o lado científico,.. em 1924 publicou o livro Documentos para o Estudo da Reencarnação... o estudo mais importante daquela época” (9, pág. 29). Peter Bander, ao escrever sobre suas pesquisas com gravação de vozes de Espíritos, dedica o capítulo VII aos espíritas: Os Espíritas e as Vozes. Apesar de descrever apenas sua experiência com os espíritas ingleses, e em nenhum momento diferenciar Espiritismo de Espiritualismo, demonstra considerar o Espiritismo uma prática não-científica (10, capítulo VII).
Mesmo espíritas brasileiros, ao desenvolverem atividades científicas sobre fenômenos espirituais, aderem a Parapsicologia, indicando que apenas ser espírita não é suficiente para definir-se como um cientista. Herculano Pires, para discutir Ciência, não desenvolveu um curso de Ciência Espírita, pelo contrário, presidiu o Instituto Paulista de Parapsicologia e lecionou um curso de parapsicologia, do qual originou o livro Parapsicologia Hoje e Amanhã (11). Hernani Guimarães Andrade escreveu em 1960 “Novos Rumos à Experimentação Espirítica”, cujo título sugere uma nova proposta para a Ciência Espírita. Porém em seu próximo livro, de 1967, troca a ciência em estudo: “Parapsicologia Experimental”. Fundou um instituto de pesquisas, o qual, como Herculano Pires, não tem o adjetivo espírita em seu nome: Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas. Clóvis Nunes, no livro de divulgação de seu trabalho científico “Transcomunicação – comunicações tecnológicas com o mundo dos mortos”, define Hernani Guimarães como engenheiro, parapsicólogo e pesquisador brasileiro (12, pág. 133), não o definiu como espírita. O mesmo aconteceu na descrição das atividades de Ney Prieto Peres ao final do prefácio do livro de Hernani Guimarães, a longa lista de atividades desenvolvidas é finalizada com o adjetivo “parapsicólogo” (13, pág. XXI).
Este comportamento dos próprios espíritas do século XX, de se aproximarem da parapsicologia para poderem respirar Ciência, mantêm-se até hoje. Quando se referem ao Espiritismo, falam em ciência, porém para provarem cientificamente os conceitos espíritas, buscam os trabalhos da metapsíquica, escola científica abandonada após o desencarne de seu criador Charles Richet em 1935, ou na parapsicologia, desenvolvida a partir de 1940 pelos professores William McDougal e Joseph B. Rhine. Este recurso de não argumentação não caracteriza “fazer ciência”, mas apenas “dialogar com a ciência”. Pode ser sintetizado, simbolicamente, no subtítulo do livro de Admir Serrano: “A ciência e os fatos comprovam o que o Espiritismo ensina” (14).
Que tipo de ciência é o Espiritismo, se os próprios espíritas quando desejam ser cientistas, se definem cientistas pertencentes a outras ciências? Se o Espiritismo é ciência, por que apenas ser espírita é insuficiente para tornar-se cientista? Se o Espiritismo é ciência, por que para comprovar que os conceitos espíritas são cientificamente verdadeiros os próprios espíritas se fundamentam em outras ciências? As respostas para estas perguntas percorrem todos os capítulos deste. Neste capítulo buscarei identificar uma Ciência Espírita possível para nós, espíritas brasileiros. Defino como Ciência Espírita toda atividade científica desenvolvida em continuidade aos trabalhos de Kardec. Toda ciência que ignora as conclusões de Kardec, que volta ao começo dos problemas, que reconceitua todos os termos, tornando-se de difícil compreensão para os espíritas, não será definido como ciência espírita somente porque estuda os mesmos fenômenos espirituais. Defendo que a Ciência Espírita está hibernando, e poderá morrer por inanição, porém há sinais vindos de vários pontos do Brasil, de que o momento é propício a reversão desta tendência.
Primeiramente tentaremos definir o que é Ciência.
1. Uma Definição Histórica de Ciência(a)
Tudo o que o homem faz, acredita, conhece e pensa, sofre interferência das idéias. Através de diferentes formas o Homem adquire conhecimento: senso comum, científico, teológico/religioso, filosófico e artístico/estético. Toda produção de conhecimento é resultado das condições materiais da vida humana em um dado momento histórico (15, pág. 12-13).
Atualmente, a Ciência é aparentemente conhecida de qualquer pessoa, estando associada à tecnologia e à experimentação. No entanto, isto não é uma marca comum da ciência na história, nem é a única marca da ciência nos dias de hoje (15, pág. 427). Uma marca fundamental da ciência nos diferentes momentos da história é a tentativa de explicar racionalmente a natureza (15, pág. 13), descobrindo as leis que regem os fenômenos. A explicação racional elimina o mistério, revelando, ao mesmo tempo, aquilo que se sabe e aquilo que não se sabe, permitindo interferir naquilo que se conhece. O que é considerada ciência e explicação racional sofreu mudanças ao longo do tempo.
No início, ciência e filosofia eram uma coisa só, indistintas e impregnadas de misticismo(c), onde a crença era o caminho para a construção do saber. Caminhou, na Grécia Antiga, para um momento de ênfase na racionalidade. A Idade Média na Europa Ocidental representa um momento de retorno à fé, onde a autoridade de certos pensadores e a concordância com as afirmações religiosas eram os critérios maiores de verdade. No Renascimento ocorre uma nova valorização da racionalidade. Inicia-se um novo confronto dentro da Ciência, que permanece até os nossos dias: a disputa entre a observação/sentidos e a razão pelo reconhecimento de caminho mais adequado para se alcançar a verdade. A ciência passa a ocupar um lugar próprio e distinto da filosofia.
A ciência é uma atividade metódica (15, pág. 14). O método científico(b) não é único nem o mesmo ao longo do tempo. A observação e a experimentação, por exemplo, passaram a serem consideradas somente a partir de Galileu Galilei (1564-1642). A contraposição sentido-razão gera duas lógicas que fundamentarão a atividade científica: o indutivo e o dedutivo. Francis Bacon (1561-1626) elaborou as bases teóricas do método indutivo. Com a convicção de que o conhecimento humano só é possível através da mediação dos sentidos (Empirismo), defendeu que apenas após a observação repetidas vezes de fatos semelhantes poder-se-ia extrair explicações científicas. René Descartes (1596-1650) contestou o método empirista, restaurando o papel da razão e da reflexão. Defendeu o poder humano de ter idéias a priori / idéias inatas, ou seja, de idéias prescindidas do contato direto com o real através dos sentidos. Desta forma, recuperou o método dedutivo, onde, através da razão, descobrem-se princípios gerais sobre a realidade, os quais serão confirmados mediante o conhecimento de fatos particulares (racionalismo). Immanuel Kant (1724-1804) propôs uma aproximação dos dois métodos. Cético quanto a possibilidade de conhecimento do real, defendeu que a ciência se limitasse à observação dos comportamentos e das relações da natureza, ou seja, se limitasse ao fenômeno (17, pág. 13-15).
No início da Revolução Industrial, século XVIII, a ciência não era necessária ao desenvolvimento técnico. À medida que o capitalismo avança, porém, geram-se problemas e, cada vez mais, a ciência é necessária para respondê-los. No século XVIII os efeitos da ciência sobre a vida e o pensamento são libertadores, aliada a todas as forças do progresso. No final do século XVIII são fundadas as primeiras sociedades científicas gerais na Inglaterra. No início do século XIX, contemporâneos a Kardec, a maioria dos cientistas era ou amadora ou treinada como aprendiz. Com o crescente volume de conhecimento produzido, surgem as sociedades científicas especializadas. O professor universitário começa a assumir a função de cientista, com crescente profissionalização da atividade científica devido ao volume e prestígio do trabalho científico. Ao longo do século XIX, a Ciência foi perdendo sua independência, e no final do século, os conhecimentos científicos passaram a desenvolvidos para criar novas indústrias, e seus efeitos sociais tornam-se, paulatinamente, ambíguos e incertos (15, pág. 291-294).
No século XIX começa a individualização das ciências sociais e sua independência metodológica das Ciências Naturais. Instaura-se o “problema político”, tendo de um lado o Marxismo de Karl Marx (1818-1883), e do outro o Positivismo de Auguste Comte (1798-1857). Marx, empirista e dialético(d), mantém o concreto real como base do conhecimento, este real é objetivo e contraditório. Marx abdica do indivíduo e dos pequenos grupos como objeto de análise, embora acredite na sua força como membros de uma classe social. O Positivismo de Comte, ao distanciar-se das questões metafísicas, concebe o fato como autônomo e verdadeiro, o real é objetivo e não-problemático, e, como Marx, acabou se descuidando do sujeito e apegando-se a quantidade (17, pág. 15-17).
2. O método científico idealizado e realizado por Allan Kardec
A melhor descrição de Kardec sobre a metodologia(b) que utilizou e que considerou científica, encontramos no item 2 da Introdução d’O Evangelho Segundo o Espiritismo (4).
Descreve o mundo espiritual habitado por sociedades de Espíritos semelhantes as dos reencarnados, com diversidade de opiniões e de conhecimento: “Sabe-se que os Espíritos, em conseqüência das suas diferenças de capacidade, estão longe de possuírem individualmente toda a verdade. As revelações que alguém possa obter são de caráter individual, sem autenticidade, e devem ser consideradas como opiniões pessoais deste ou daquele Espírito, sendo imprudência aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.”
Defende a razão como ferramenta para alcançar a verdade, porém, submete o racionalismo e o método dedutivo a observação dos fatos: “O primeiro controle é, sem contradita, o da razão, ao qual é necessário submeter, sem exceção, tudo o que vem dos Espíritos. Toda teoria em contradição manifesta com o bom senso, com uma lógica rigorosa, com os dados positivos que possuímos, por mais respeitável que seja o nome que a assine, deve ser rejeitada. Mas esse controle é incompleto para muitos casos, em virtude da insuficiência de conhecimentos de certas pessoas, e da tendência de muitos, de tomarem seu próprio juízo por único árbitro da verdade”.
Defende a necessidade da repetição de observações semelhantes para se alcançar a verdade, de forma similar ao método indutivo: “A concordância no ensino dos Espíritos é, portanto, o seu melhor controle, mas é ainda necessário que ela se verifique em certas condições. A menos segura de todas é quando um médium interroga por si mesmo numerosos Espíritos sobre uma questão duvidosa. Não há garantia suficiente, da mesma maneira, na concordância que se possa obter pelos médiuns de um mesmo centro, porque eles podem sofrer a mesma influência. A única garantia segura do ensino dos Espíritos está na concordância das revelações feitas espontaneamente, através de um grande número de médiuns, estranhos uns aos outros, e em diversos lugares. A experiência prova que, quando um novo princípio deve ser revelado, ele é ensinado espontaneamente, ao mesmo tempo, em diferentes lugares, e de maneira idêntica, senão na forma, pelo menos quanto ao fundo. Nossa opinião não é mais do que uma opinião pessoal, que pode ser justa ou falsa, porque não somos mais infalíveis do que os outros. E não é porque um princípio foi ensinado que o consideramos verdadeiro, mas porque ele recebeu a sanção da concordância”. Para realizar este trabalho foi necessário criar uma rede de parceria com vários centros espíritas, o quais enviam-lhe textos mediúnicos. Kardec consegue este intento em 1863, quando afirma que “na nossa posição, recebendo as comunicações de cerca de mil centros espíritas sérios, espalhados pelos mais diversos pontos do globo, estamos em condições de ver quais os princípios sobre que essa concordância se estabelece” (4, pág. 19). Começou a construir esta rede em 1857, convidando o leitor a enviar-lhe comunicações (1, pág. 159).
Quando Kardec defende a concordância no fundo, e não na forma, ele nos remete à hermenêutica. “A hermenêutica é considerada a disciplina básica que se ocupa da arte de compreender textos. Sua função central se deve à capacidade de colocar-se no lugar do outro, que é o ‘diferente de mim’ no presente, mas com o qual eu formo a humanidade” (18, pág. 84).
Kardec afirma reiteradas vezes que “a revelação espírita possui um duplo caráter: ela participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica” (5, pág. 15). O caráter científico da Doutrina Espírita foi realizado pelo próprio Kardec, e não pelos Espíritos. Poucos espíritas os procedimentos científicos do trabalho kardequiano, do qual algumas inferências podemos extrair ao compararmos a primeira e a segunda edição d’O Livro dos Espíritos (tabela 1).
a: Kardec transferiu o conteúdo do Capítulo X do Livro Primeiro da 1a edição d’O Livro dos Espíritos para O Livro dos Médiuns, publicado em 1861, um ano após o lançamento da 2a edição d’O Livro dos Espíritos.
b: Em negrito destacamos que na primeira edição Kardec não utilizou a adjetivação santo aos nomes dos Espíritos. A lista de colabores é diferente: temos o espírito da Verdade, Platão e Santo Agostinho apenas na 2a edição, e Hahnemann e Napoleão apenas na 1a edição.
c: Kardec une perguntas e fornece uma única resposta e uma única pergunta em várias ocasiões na segunda edição. O número de perguntas de fato realizadas por Kardec para elaboração da 2a edição é muito maior do que a numeração indicada no livro.
d: Kardec transfere o conteúdo do seu comentário para a resposta dos Espíritos.
e: na primeira edição há contradição nas respostas às duas perguntas de número 108, enquanto a primeira afirma que o Espírito tem consciência imediata ao deixar o corpo, a segunda afirma que “a alma necessita de algum tempo para se reconhecer”. Na 2a edição, Kardec faz uma fusão das duas respostas, priorizando a resposta que julgou mais adequada.
f: Em O Que é o Espiritismo, Kardec apresenta outra definição de Espírito e Alma: “alma é um ser simples; o Espírito um ser duplo e o homem um ser tríplice... alma para designar o princípio inteligente e... Espírito para o ser semimaterial formado por aquela e o corpo fluídico”. (2, pág. 96)
g: na 2a edição Kardec elabora o capítulo XI, Os Três Reinos, que não existia na 1a edição, em sincronia com o impacto intelectual que causou Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, de Charles Darwin, em 1859, um ano antes da segunda edição d’O Livro dos Espíritos.
Comparando os conceitos e modelos apresentados na 1a edição com a 2a edição, percebemos que na segunda edição os modelos explicativos para os fenômenos, sejam espirituais ou físicos, são mais dialéticos e evolucionistas. Esta mudança se deve não apenas ao maior número de perguntas, mas também à mudança no enfoque dos problemas levantados por Kardec, e possivelmente, aos critérios de seleção das respostas. Ocorre fusão de respostas, exclusão de outras, e modificação ou complementação de outras, demonstrando que, principalmente na segunda edição, muitas respostas são, na verdade, sínteses de um conjunto de respostas comparadas e analisadas. Esta metodologia indutivo-dedutiva com que Kardec manipula e interpreta as respostas dos Espíritos é o que ele definiu como Ciência Espírita. Alguns críticos, e muitos espíritas, não compreendendo isto, acreditam que Kardec defendeu a cientificidade do Espiritismo porque debatia temas da alçada da Ciência. Na verdade, esta atividade, que Sandra Stoll chamou corretamente de “dialogo com as ciências” (19, pág. 47), Kardec chamou de Filosofia Espírita.
O objeto de estudo científico de Kardec não é a mensuração material do fenômeno mediúnico, mas o estudo do conteúdo inteligente destas comunicações: “A Ciência Espírita compreende duas partes: uma experimental, sobre as manifestações físicas; outra filosófica, resultante das manifestações inteligentes” (1, pág. 159). Seu método “é fundamentado no diálogo com os Espíritos” (20, pág. 2). Por isso, há a necessidade da concordância universal, por isso afirma que n’O Livro dos Espíritos desenvolveu “o aspecto filosófico da Doutrina Espírita” (3, pág. 11). Ao atacar a incapacidade das Ciências Naturais em estudar os fenômenos espíritas, não se refere a incapacidade destas realizarem as mensurações dos efeitos físicos das manifestações mediúnicas, mas a incapacidade de analisarem seus conteúdos intelectuais. Com esta crítica, Kardec se alinha à grande número de cientistas sociais, que posteriormente desenvolverão uma Ciência Social metodologicamente independente das Ciências Naturais. Portanto, Kardec deve ser estudado como um precursor das novas Ciências Sociais.
3. As Mudanças nas Ciências Sociais do Século XX
No século XX encontramos o pleno desenvolvimento da indústria científica. A íntima relação entre a ciência e a produção no capitalismo atual direciona o empreendimento científico, e diferentes ramos da ciência desenvolvem-se desigualmente, em função das possibilidades de aproveitamento econômico de seu produto. A divisão capitalista do trabalho se reflete na atividade científica, tornando-a fragmentada e hierarquizada. O cientista aborda parcelas progressivamente menores do real, perdendo a visão de totalidade e o controle do produto de seu trabalho. Uma concepção dominante atual considera a ciência, seu método e seu produto como neutro e objetivo. Uma visão alternativa critica e rompe com o capitalismo, considerando a atividade científica historicamente determinada e, portanto, ideologicamente comprometida (15, pág. 435-436).
A Ciência Moderna, com seus quatro séculos de desenvolvimento, não se mostrou capaz de exterminar as desigualdades sociais e os sofrimentos humanos. Na maioria das vezes tem funcionado como instrumento do poder, apesar de seus ideais de neutralidade e objetividade. A ciência está presa à contradição de ser uma produção do homem, e por isso, presa a grandeza e as misérias humanas (17, pág. 13).
As chamadas metodologias qualitativas na sociologia, que buscam uma explicação em profundidade, são exemplos de reação contra o paradigma dominante de análises quantitativas, que buscam uma descrição generalizante. Não há dúvidas de que as estruturas existem e devem ser conhecidas, mas é a ação humana e as interações sociais que constituem o motor da história, cabendo a cada um a metodologia apropriada. Desenvolvem uma crítica à aplicação dos paradigmas das Ciências Naturais aos estudos do Homem, semelhante a Kardec.
Apenas uma geração após Kardec, viveram pensadores que fundamentaram uma das teorias mais frutíferas das metodologias qualitativas na sociologia, o Interacionismo Simbólico. Surgiu na virada do século XIX com Cooley (1864-1929), Thomas (1863-1947) e Mead (1863-1931). Mead, por exemplo, enfatizou que o indivíduo age socialmente em relação a outras pessoas e interage socialmente consigo mesmo.
Herbert Blumer, através de seus escritos iniciados em 1937, sistematiza os pressupostos básicos da abordagem interacionista. O ser humano age com relação às coisas na base dos sentidos que elas têm para ele, a interação social que estabelece com seus companheiros são manipulados e modificados através de um processo interpretativo. A sociedade é composta de indivíduos e grupos em um processo interativo dinâmico. As situações são percebidas de forma seletiva, de acordo com as necessidades definidas a partir dos sentidos que as coisas têm para aquela unidade de ação. O meio circundante de qualquer pessoa consiste unicamente dos objetos que essa pessoa reconhece. A ação individual é uma construção e não um dado. O pesquisador deve “assumir o papel do outro” e ver o mundo através “dos olhos dos pesquisados” (17, pág. 25-35). Há um paralelo entre estes conceitos e o modo com que Kardec enfrentou as comunicações com os Espíritos. Não é por acaso que a entrevista é um dos métodos científicos utilizados por estes pesquisadores(e).
Na década de 1920, com fundamentos próximos ao interacionismo simbólico, porém assumidamente influenciados pelo pensamento marxista, nietzscheano e historicista, Max Scheler forja o termo Sociologia do Conhecimento. Analisa a construção social da realidade (21, pág. 14-16), e o conhecimento que dirige a conduta humana na vida diária, no cotidiano. Uma preocupação demonstrada por Kardec, ao notar que as opiniões são diferentes entre os Espíritos, foi a tentativa de se identificar as opiniões que demonstram elevação intelectual e moral, discriminando o conhecimentos compartilhado entre os Espíritos superiores e aqueles compartilhados pelo Espíritos inferiores.
Técnicas científicas, desconhecidas por Kardec, são desenvolvidas no século XX para analisar comunicações, sendo das mais importantes o conjunto de técnicas denominadas Análise de Conteúdo (22). Através de técnicas hermenêuticas controladas pela introdução dedutiva da inferência, busca-se compreender o que está escondido retido em qualquer mensagem. O primeiro nome de destaque é o de H.
Lasswell, que fez análises de imprensa e de propaganda desde 1915. Nas décadas de 1940-1950, 25% das pesquisas pertenciam à investigação política, pois o Governo Americano exortou os analistas a desmascararem os jornais e periódicos suspeitos de propaganda subversiva, principalmente nazista e comunista. Em 1950-1960 ocorre a expansão das aplicações da técnica a disciplinas diversificadas, como a etnologia, história, psiquiatria, psicanálise, lingüística, sociologia, psicologia, ciência política e jornalismo. Ou seja, começa a abranger as ciências chamadas por Gadamer de “Ciências do Espírito” (18, pág. 84). De 1960 em diante surgem três fenômenos novos: o uso do ordenador (computador), interesse pelos estudos da comunicação não verbal e os trabalhos lingüísticos. Destes últimos surge uma nova divisão chamada atualmente Análise do Discurso.
Há uma crescente crítica, dentro do ambiente científico, à Ciência Moderna, construída nos séculos XVII – XIX. Boaventura defende a necessidade do surgimento de uma nova ciência, chamada de Ciência Pós-Moderna. “Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica. A distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer, assim como a total separação entre a natureza e o ser humano. A Ciência Moderna privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. Um conhecimento baseado na formulação de leis tem a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. Hoje são muitos e fortes os sinais de que o modelo de racionalidade científica atravessa uma crise profunda e irreversível. Estamos em um período de revolução científica, que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando acabará. A importância destas novas teorias está na nova concepção da matéria e da natureza: em vez da eternidade, a história; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. A superação da separação ciências naturais / ciências sociais tende a revalorizar os estudos humanísticos. O mundo é comunicação e, por isso, a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a “situação comunicativa”. A ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é racional; só a configuração de todas elas é racional”. Apesar de seu entusiasmo, Boaventura confessa que “nenhum de nós pode neste momento visualizar projetos concretos de investigação que correspondam inteiramente ao paradigma emergente que aqui delineei” (23).
4. Uma Proposta para uma Ciência Espírita Possível
Precisamos efetivar uma prática científica espírita. Como ponto de partida sugiro reconstruirmos uma rede de centros espíritas que intercambeiem os dados coletados em reuniões mediúnicas. A análise científica destes textos, com os objetivos de identificar as idéias dos Espíritos de diferentes padrões evolutivos, exigirá o aprofundamento do conhecimento em Hermenêutica, em técnicas e teorias científicas qualitativas como a Análise de Conteúdo e a Sociologia do Conhecimento.
Se considerarmos que os Espíritos desencarnados se encontram e formam grupos afins no mundo espiritual, aceitarei que no mundo espiritual formam-se sociedades de Espíritos. Estas sociedades sofrem as mesmas leis dinâmicas típicas das sociedades humanas, pois estamos estudando o comportamento de Espíritos, igual ao objeto de estudo da sociologia e antropologia. Desta forma, os Espíritos compartilham conhecimentos, conceitos, crenças, ou seja, possuem conhecimentos socialmente produzidos, o que é o objeto da Sociologia do Conhecimento. Se a mente é um atributo do Espírito, a forma de se comunicar intelectualmente não deve variar muito entre reencarnados e desencarnados, ou seja, os desencarnados também desenvolvem representações sociais, também misturam em suas falas as idéias pessoais e as idéias do grupo, também são ideologicamente influenciados. Se desejo compreender quais idéias são semelhantes entre diferentes Espíritos, posso utilizar a mesma Análise do Discurso e a mesma Análise de Conteúdo, pois o modo de produção intelectual não mudou com a desencarnação. Poderemos com isso, assegurar, cientificamente a presença de uma idéia estranha, diferenciando informação mediúnica de informação anímica.
Não necessitamos que todos conheçam todas estas teorias, porém todos podem participar do processo, fornecendo textos mediúnicos coletados com critérios e seriedade. Ao mesmo tempo, todos os centros espíritas envolvidos devem participar dos debates sobre as conclusões extraídas da coletânea destes textos. A prática regular de debate franco das comunicações mediúnicas, e a discussão sobre a própria confiabilidade do método científico escolhido, podem ser explorados como uma ferramenta educacional capaz de desenvolver a cientificidade reflexiva e libertadora da consciência e do pensamento em cada casa espírita participante. Com a implantação de uma estratégia científica barata, explorando o que temos abundante no centro espírita, a mediunidade, poderemos dar um salto de qualidade intelectual, a qual espero repercuta no comportamento e no sentimento. Estaremos confirmando de que ser espírita é sinônimo de ser cientista ao firmar-se como uma Ciência Independente da industria científica, poderá recuperar um dos propósitos iniciais da Ciência Moderna, a libertação do Espírito. Podemos consolidar uma metodologia particular de fazer Ciência, com toda a rigorosidade metodológica, porém coerentes com nossa história, coerentes com nossos conceitos espíritas. Temos condições de apresentar à sociedade uma ciência nova, mais próxima dos postulados pós-modernos de integração dos diferentes métodos de conhecimento humano. Recuperemos as premissas kardequianas de que “o controle universal é uma garantia para a unidade futura do Espiritismo, e anulará todas as teorias contraditórias. É nele que, no futuro, se procurará o criterium da verdade. É ainda uma garantia contra as alterações que, em proveito próprio, pretendessem introduzir no Espiritismo as seitas que dele quisessem apoderar-se, acomodando-o à sua maneira. Por maior, mais bela e justa que seja uma idéia, é impossível que reúna, desde o princípio, todas as opiniões. Os conflitos que dela resultam são a conseqüência inevitável do movimento que se processa, e são mesmo necessários, para melhor fazer ressaltar a verdade. Não será pela opinião de um homem que se produzirá a união, mas pela unanimidade da voz dos Espíritos. Nem será tampouco um Espírito, vindo impor-se a quem quer que seja. É a universalidade dos Espíritos, comunicando-se sobre toda a Terra, por ordem de Deus. Este é o caráter essencial da doutrina espírita, nisto está a sua força e a sua autoridade” (4, pág. 19-22).
Notas:
(a) Este tópico foi construído, principalmente, através da compilação de frases da Introdução, Posfácio e capítulo 15 da referência bibliográfica 15 e da Introdução da referência bibliográfica 17.
(b) Podemos definir: 1) Método como o programa que regula previamente uma série de operações que se devem realizar, apontando erros evitáveis, em vista de um resultado determinado; 2) Técnica como o conjunto de processos de uma arte, a maneira, o jeito, a habilidade especial de executar ou fazer algo; 3) Metodologia como a arte de dirigir o espírito na investigação da verdade (16).
(c) Misticismo: tendência em considerar a ação de forças espirituais ocultas na natureza, que se manifestam por vias outras que não as da experiência comum ou as da razão (16).
(d) Dialética pode ser definida, filosoficamente, como teorias que aceitam que na realidade desenvolvem-se processos gerados por oposições que provisoriamente se resolvem, formando uma nova unidade (16).
(e) Outros métodos científicos utilizados pelo Interacionismo Simbólico, além da entrevista: 1) Observação Participante, que originou dos trabalhos antropológicos de Malinowski e da Escola Sociológica de Chicago na década de 1920, onde o observador está em relação face a face com os observados, e, em participando com eles em seu ambiente natural de vida, coleta dados; 2) A História de Vida, primeira obra de 1927; 3) A História Oral, que tomou vigoroso impulso na década de 1960, nos Estados Unidos.
Referências Bibliográficas
1) Allan Kardec, O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, 1857, tradução de Canuto Abreu, Companhia Editora Ismael, São Paulo, 1957.
2) Allan Kardec, O Que é o Espiritismo, 1859, Editora LAKE, 26° edição, São Paulo, 2001.
3) Allan Kardec, O Livro dos Médiuns, 2° edição , 1862, Editora LAKE, 23° edição, São Paulo, 2004.
4) Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, 1865, Editora LAKE, 60° edição, São Paulo, 2005.
5) Allan Kardec, A Gênese, 1868, Editora LAKE, 17° edição, São Paulo, 1994.
6) Gabriel Delanne, O Fenômeno Espírita, 1893, Editora FEB, 7° editora, Rio de Janeiro, 1998.
7) José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas Implicações Terapêuticas, 1979, Edições USE, 5° edição, São Paulo, 1995.
8) Ernesto Bozzano, Comunicações Mediúnicas entre Vivos, Editora EDICEL, 4° edição, São Paulo, 1987.
9) Karl E. Muller, Reencarnação Baseada em Fatos, 1970, Editora EDICEL, 4° edição, São Paulo, 1986.
10) Peter Bander, Os Espíritos Comunicam-se por Gravadores, 1972, Editora EDICEL, 4° edição, São Paulo, 1985.
11) José Herculano Pires, Parapsicologia Hoje e Amanhã, 1965, Editora EDICEL, 7° edição, São Paulo, 1982.
12) Clóvis S. Nunes, Transcomunicação – Comunicações Tecnológicas com o Mundo dos “Mortos”, Editora EDICEL, 2° edição, São Paulo, 1990.
13) Hernani Guimarães Andrade, Espírito, Perispírito e Alma, 1984, Editora Didier, 1° edição, Votuporanga, 2006.
14) Admir Serrano, Morrer não é o Fim, Editora Petit, 1° edição, São Paulo, 2008.
15) Maria Amália Andery e colaboradoras, Para Compreender a Ciência – Uma Perspectiva Histórica, 1988, Editora EDUC e Editora Garamond, 14° edição, São Paulo/Rio de Janeiro, 2004.
16) Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 3° edição, Rio de Janeiro, 1999.
17) Teresa Maria Frota Haguette, Metodologias Qualitativas na Sociologia, 1987, Editora Vozes, 5° edição, Petrópolis,1997.
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19) Sandra Jacqueline Stoll, Espiritismo à Brasileira, Editora Edusp e Orion Editora, 1° edição, 2003.
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21) Peter L. Berger e Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade – Tratado de Sociologia do Conhecimento, 1985, 26° edição, Petrópolis, 1996.
22) Laurence Bardin, Análise de Conteúdo, 1977, Edições 70, Portugal, 1995.
23) Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências na transição para uma Ciência Pós-moderna, revista Estudos Avançados, volume 2, número 2, páginas 46-71, Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, agosto de 1988.
ENDEREÇO ELETRÔNICO ORIGINAL DO ARTIGO:
http://www.assepe.org.br/artigos/Leo_Busca_Ciencia_Espirita.pdf
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