Amélie Boudet
Publicado no Correio Fraterno - Edição 472 novembro/dezembro 2016
Por Eliana Haddad e Izabel Vitusso
O pesquisador Adriano Calsone mergulhou na história de Kardec e Amélie
Boudet na França do século 19. Pesquisou a história do espiritismo pós-Kardec e
lançou em 2015 o livro Em nome de Kardec. Ampliando suas pesquisas, resgata
agora a grande personalidade que foi Amélie Boudet, em Madame Kardec (Vivaluz).
Calsone relata a grandeza do trabalho de Amélie e como ela foi à luta
para preservar a originalidade das obras fundamentais do espiritismo.
Por que você resolveu pesquisar a vida de
Amélie Boudet?
Trabalho com pintura mediúnica há mais de uma década. Sempre ouvi falar
que ela foi artista e tinha alguns livros sobre belas artes, poesias, contos.
Daí, pensei: "Não é possível que os espíritas não tenham mais dados
biográficos sobre essa mulher!" O que temos de registros brasileiros sobre
ela, desde o início do século 20, são dados pífios, replicados. Encontrei muita
dificuldade de localizar novas informações. Repensei: "O caminho é a
França e a Revista Espírita, a partir de 1869".
Como você conseguiu resgatar esses dados?
Por obras espíritas e não espíritas, pela internet, por meio da
Biblioteca Nacional da França, e tenho também um amigo francês espírita que muito
me ajudou nas pesquisas. Ao contrário do que imaginávamos, existiam muitas
menções sobre as contribuições de Amélie no meio espírita francês da época.
Depois da morte de Kardec, ela continuou a Revista Espírita com Pierre-Gaëtan
Leymarie. Ele, mais intensamente, mas ela também permaneceu ativa, trabalhando
com discrição nos bastidores, até desencarnar em janeiro de 1883. Como foi
morar na Villa Ségur, ficava reservada e longe do escritório da Revista, mas
elegeu Leymarie como mandatário para representá-la na livraria espírita e na
Revista. E aí vem a grande questão: Ele não era só espírita... Acreditava,
incentivava e financiava outras crenças místicas como o roustainguismo, a
teosofia, a pneumatologia universal, que se tratava de mais uma doutrina secreta.
O livro conta todas essas passagens?
Sim. Ele (Leymarie) estava passando por dificuldades financeiras por
causa da Comuna de Paris. Tinha filhos pequenos e pais doentes, e foi pedir
ajuda à Amélie, que socorreu toda a família, inclusive cedendo-lhes morada
gratuita em uma de suas casas de aluguel. Amélie, aliás, não era filha única,
como dizem. Quando seu pai morreu, herdou uma extensa lista de patrimônios
junto ao irmão. Uma matéria que saiu num jornal jurídico, na década de 1830,
explica um calote que Rivail tomou em função de um empréstimo que fez para
Julien François Boudet, irmão de Amélie.
O que você descobriu de mais interessante?
O que me chocou bastante foi a questão do assédio moral que Amélie
sofreu depois da morte do marido. Há depoimentos da época publicados no formato
de denúncias veladas, feitas por espíritas que conviviam no círculo parisiense
do escritório da Revista Espírita. Havia grande resistência do grupo dos
espíritas sincretistas, em torno de Leymarie, em aceitar suas opiniões por ela
ser mulher, empreendedora, artista e também uma espírita já de idade.
Mas ninguém a defendia?
Em 1884, um ano depois da morte dela, uma amiga do casal chamada Berthe
Fropo deixou um documento publicado, um verdadeiro desabafo, uma brochura, Beacoup
de Lumiére (Muita Luz) .Impressionou-me, também, o fato de Amélie ter deixado
muitas realizações espíritas. Fundou a respeitável Sociedade Anônima e, anos
mais tarde, inaugurou outra Sociedade para a continuação das obras espíritas de
Allan Kardec. Pode-se afirmar, sem receios, que ela foi pioneira na organização
e valorização do que hoje conhecemos por Comunicação Social Espírita. Era muito
inteligente, lúcida e ativa.
O que fez Amélie tão logo Kardec desencarnou?
Já no primeiro semestre de 1869, colocou em prática a Constituição
Transitória do Espiritismo, sugerida por Kardec como medida expressa,
principalmente para derrubar qualquer ideia de um "chefe do
espiritismo". Ela tinha uma visão inovadora das Sociedades que fundou,
administrava mais de 30 imóveis próprios, herdados do pai, não só em Paris.
Percebeu também que os livros espíritas do marido podiam ser muito mais
acessíveis, baratos. Há passagens na Revista Espírita que demostram que ela
viveu muitas situações de privação, repensando os rumos do trabalho deixado por
Kardec, preservando com grande cuidado a literatura espírita nascente.
Em sua análise, por que o espiritismo não
conseguiu ter a continuidade como Kardec queria, através da Amélie?
Em 1868, Kardec já vinha pressentindo vários cismas entre os fundadores
da Sociedade. Ele queria prezar os ensinamentos espíritas pela exemplificação
da moral, mas muitos acreditavam que o caminho deveria ser o fenomenológico,
defendendo que a Sociedade deveria ser aberta não apenas para os societários, mas
para que outras pessoas pudessem frequentá-la à constatação das experiências de
efeitos físicos. Kardec não concordava com isso e chegou a pedir o seu
afastamento da presidência, inclusive, por sondar os rumos sincréticos que a
linha editorial da Revista Espírita poderia tomar. E foi o que, infelizmente,
acabou acontecendo, após sua morte. A viúva fez de tudo para evitar essa
incorporação obscura, orquestrada pelos próprios "amigos espíritas"
do casal, de um espiritismo esotérico na França. Uma das provas desse desdém
está numa declaração de 1884: "Eu parei de ir às reuniões do Comitê de
leitura da Revista Espírita porque os senhores Leymarie e Vautier não tinham
respeito por mim. Sempre que eu queria colocar as minhas opiniões, eles me
faziam dura oposição, por isso eu tive que me retirar."
Por que Amélie permitiu na época que isso
acontecesse?
Distante, ela confiou muito em Leymarie e, quando Berthe Fropo percebeu
que a Doutrina estava em perigo, a Sociedade já perdia seus rumos espíritas.
Madame Fropo veio do círculo dos Kardec, conheceu o codificador e sabia muito
bem da existência de ações corruptíveis que ocorriam nos bastidores do
espiritismo francês. Ela documenta que Amélie não queria destruir a própria
Sociedade que ela ajudou a fundar com o marido. Décadas depois, a espírita
Sociedade Anônima virou a sincrética Sociedade Científica do Espiritismo.
Amélie muito se entristeceu com isso, ficou recuada, doente e acabrunhada, mas
a amiga Berthe sempre a incentivava a não desistir da coerência doutrinária.
Inclusive, aconteceram muitas reuniões na Villa Ségur, conforme narrado na
brochura Beacoup de lumiére, nas quais o suposto espírito Kardec se comunicava
para dar-lhe orientações. Ela era muito discreta e tomou atitudes importantes
contra o sincretismo na Doutrina, incentivando, por exemplo, a fundação da
União Espírita Francesa (1882) e participando das refutações ao lado da família
Delanne.
Como era a relação de Amélie com a família
Delane?
Foi ela quem chamou às pressas Gabriel Delanne e sua esposa, quando as
mensagens do suposto espírito Allan Kardec começaram a chegar, alertando-os
que, se nada de emergencial fosse feito, a Doutrina seria engolida por um
misticismo praticado pelos "espíritas da primeira hora". Foi assim
que juntamente com Madame Fropo e a família Delanne fundou a União Espírita
Francesa. Delanne inaugurou o periódico Le spiritisme (O espiritismo), como
meio de divulgação dos ideais espíritas de Kardec, bem como para as refutações
da Revista Espírita que, no início da década de 1880, já estava totalmente fora
do seu propósito espírita inicial, veiculando artigos da Teosofia de Blavatsky,
d'Os quatro evangelhos de Roustaing, da Sociedade da Pneumatologia Universal,
etc.
Qual o destino do material conservado por Amélie?
Em 1871, ela promoveu uma organização em sua casa, selecionando textos,
extratos, manuscritos, cartas de Kardec, etc. Reuniu-se com o pessoal da
Sociedade Anônima e pediu a Leymarie que os guardasse. Ele resguardou os
originais kardecianos, publicando-os na Revista Espírita, como notas e artigos,
até 1874. Por fim, em 1890, ele publicou parte do volumoso material na
coletânea Obras Póstumas. Bom lembrar que na semana que Amélie morreu (janeiro
de 1883), os senhores Leymarie e Valtier, esse último diretor da Revista,
promoveram uma "seleção" daquilo que consideravam interessante deixar
para a história do espiritismo. Romperam os lacres da casa da falecida viúva e
separaram o joio do trigo, apagando Amélie da historiografia espírita. Segundo
Berthe Fropo "não houve nem inventário, nem escritura pública, salvo as
coisas fora de serviço que eles venderam aos sucateiros. (...)Mas o que me fez
tremer de indignação foi assistir a um verdadeiro auto-de-fé. O senhor Vautier
caminhava no jardim entre pilhas de papéis e cartas. Quantas comunicações
interessantes, quantas anotações deixadas pelo mestre. Tudo foi
destruído".
Você descobriu algo mais pontual sobre a
influência que teve Amélie na vinda do espiritismo?
Ela financiou a primeira edição d'O livro dos espíritos (1857) e o
primeiro fascículo da Revista Espírita (1858) com sua renda de professora e das
casas alugadas. Mas o seu maior legado talvez seja a vigilância e o cuidado que
teve na preservação das obras espíritas, além de muito zelar pela memória de
Allan Kardec. Foi dela também a iniciativa de se criar o monumento druida no
cemitério Père-Lachaise, onde os despojos mortais de Kardec foram enterrados.
Outra descoberta interessante foi a de que Amélie permaneceu de luto pelo menos
até 1874. De seus dois retratos existentes nos Anais do Espiritismo, notam-se
seus típicos trajes de luto. Mas, ao contrário de uma postura de
recrudescimento, enfrentou a dor e foi à luta.
Que lição fica para o movimento espírita hoje,
da atuação da Amélie?
Primeiro que ela, em nenhum momento, deixou de cuidar do legado espírita
do marido. Autorizou os seus assistentes da Sociedade Anônima a ir às
tipografias insalubres para resgatar os clichês das obras fundamentais – que
estavam quase se perdendo, seja por desgaste natural, seja por descuido mesmo.
Madame Fropo afirma que ela gastou em torno de 10 mil francos, uma pequena
fortuna à época, para recuperar os clichês das cinco obras fundamentais.
Escrevendo o livro, sentiu alguma presença espiritual mais marcante?
Sim. Já vinha sentindo a intuição de resgatar esses fatos, inicialmente
pelo viés artístico de Amélie. Depois, fui sentindo muito envolvimento
espiritual com algumas coisas que escrevia, resultados das pesquisas
realizadas. Senti muito a vibração espiritual delas, sempre ajudando,
incentivando-me e trazendo forças para que eu continuasse o trabalho.
Tudo o que você relatou nesse
livro é verídico?
Sim. A obra não é literatura de ficção. Citamos todas as fontes
primárias e secundárias pesquisadas, além da bibliografia. Interessante
observar que o próprio Canuto Abreu teceu algumas curiosas passagens sobre
Amélie e hoje sabemos da existência de cartas trocadas entre ela e Rivail. Ela
morava com o pai na comuna de Thiais, a 19 quilômetros de Paris, numa mansão,
para onde Kardec remetia suas cartas, uma delas com pedido de consentimento do
casamento ao senhor Boudet, o pai de Amélie. (Leia em Baú de Memórias)
Como você analisa o espiritismo
hoje, em função desse processo histórico que pesquisou?
Fiquei impressionado por constatar que toda a ruidosa história desse
sincretismo espírita francês do século 19, de certa forma reaparece viva aqui
no nosso espiritismo contemporâneo. Se tivermos a consciência coletiva de que a
literatura espírita é o nosso maior legado, fácil será compreender que
precisamos dar mais valor ao livro genuinamente espírita, ler primeiro as obras
de Kardec, utilizar sempre o bom-senso e a fé raciocinada. Somos os atuais
responsáveis por esse patrimônio. Vamos cuidar desse bem precioso, como bem fez
Amélie!
ENDEREÇO ELETRÔNICO CONSULTADO:
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