Fábio José Lourenço
Bezerra
O primeiro livro
da Bíblia, chamado Gênesis, muitas vezes é interpretado de forma literal.
Contudo, através dessa forma de interpretação, ele logo se mostra repleto de
lacunas e contradições. Quando consideramos que este livro foi escrito em
linguagem alegórica, como, aliás, o foram muitas obras da antiguidade, e dessa
forma o interpretamos, logo vislumbramos o seu profundo significado.
No capítulo
XI da excelente obra “A Gênese”, Allan Kardec trata da
figura bíblica de Adão à luz da Doutrina Espírita. Abaixo, transcrevemos parte
do seu texto:
“RAÇA ADÂMICA
38. De acordo com o ensino dos
Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se quiserem, uma dessas
colônias de Espíritos, vinda de outra esfera, que deu origem à raça simbolizada
na pessoa de Adão e, por essa razão mesma, chamada raça adâmica . Quando ela
aqui chegou, a Terra já estava povoada desde tempos imemoriais, como a América,
quando aí chegaram os europeus.
Mais adiantada do que as que a tinham
precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a mais inteligente, a
que impele ao progresso todas as outras.
A Gênese no-la mostra, desde os seus
primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem haver passado aqui
pela infância espiritual, o que não se dá com as raças primitivas, mas concorda
com a opinião de que ela se compunha de Espíritos que já tinham progredido
bastante. Tudo prova que a raça adâmica não é antiga na Terra e nada se opõe a
que seja considerada como habitando este globo desde apenas alguns milhares de
anos, o que não estaria em contradição nem com os fatos geológicos, nem com as
observações antropológicas, antes tenderia a confirmá-las.”
Já no
capítulo XII da mesma obra, Kardec nos fala, com grande propriedade, da perda
do paraíso. Inicialmente, transcreve o trecho bíblico correspondente. Vejamos:
“PERDA DO PARAÍSO 60
13. — CAPÍTULO II. — 9. Ora, o Senhor
Deus plantara desde o começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele
formara. — O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie de árvores
belas ao olhar e cujo fruto era agradável ao paladar e, no meio do paraíso 61 ,
a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do mal. (Ele fez sair, Jeová
Eloim, da terra (min haadama) toda árvore bela de ver-se e boa para comer-se e
a árvore da vida (vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do
bem e do mal.)
15. O Senhor tomou, pois, do homem e o
colocou em o paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. — 16.
Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do paraíso.
(Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (hal haadam) dizendo: De toda árvore do
jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas absolutamente o fruto da árvore da
ciência do bem e do mal; porquanto, logo que o comeres, morrerás com toda a
certeza. (E da árvore do bem e do mal (oumehetz hadaat tob vara) não comerás,
pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
14. — CAPÍTULO III. — 1. Ora, a
serpente era o mais fino de todos os animais que o Senhor Deus formara na
Terra. E ela disse à mulher: Por que vos ordenou Deus que não comêsseis os
frutos de todas as árvores do paraíso? (E a serpente (nâhâsch) era mais astuta
do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela disse à
mulher (el haïscha): Terá dito Eloim: Não comereis de nenhuma árvore do
jardim?) — 2. A mulher respondeu: Comemos dos frutos de todas as árvores que
estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente, do fruto (miperi) das
árvores do jardim podemos comer.) — 3. Mas, quanto ao fruto da árvore que está
no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não comêssemos dele e que não lhe
tocássemos, para que não corramos o perigo de morrer. — 4. A serpente replicou
à mulher: Certamente não morrereis. — Mas, é que Deus sabe que, assim houverdes
comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo
o bem e o
mal. 6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer;
que era belo e agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu
marido, que também comeu. (Ela viu, a mulher, que ela era boa, a árvore como
alimento, e que era desejável a árvore para compreender (léaskil), e tomou de
seu fruto, etc.) 8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à tarde
pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram para o meio das
árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de diante da sua face.9. Então o
Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás? — 10.Adão lhe respondeu: Ouvi
a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, essa a razão por que me escondi.
— 11. O Senhor lhe retrucou: E como soubeste que estavas nu, senão porque
comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que comêsseis? — 12. Adão lhe
respondeu: A mulher que me deste por companheira me apresentou o fruto dessa
árvore e eu dele comi. — 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste
isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto.
14. Então, o Senhor Deus disse à
serpente: Por teres feito isso, serás maldita entre todos os animais e todas as
bestas da terra; rojar-te-ás sobre o ventre e comerás a terra por todos os dias
de tua vida. — 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a sua raça e
a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar.
16. Deus disse também à mulher:
Afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás
sob a dominação de teu marido e ele te dominará.
17. Disse em seguida a Adão: Por
haveres escutado a voz de tua mulher e haveres comido do fruto da árvore de que
te proibi que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e só
com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda a tua vida.
— 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a erva da terra.
— 19. E comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra donde
foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás.
20. E Adão deu à sua mulher o nome de
Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão
e sua mulher vestiduras de peles com que os cobriu. — 22. E disse: Eis aí Adão
feito um de nós, sabendo o bem e o mal. Impeçamos, pois, agora, que ele deite a
mão à árvore da vida, que também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto,
viva eternamente. (Ele disse, Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós
para o conhecimento do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da
árvore da vida (veata pen ischlachyado
velakach mehetz hachayim); comerá dela
e viverá eternamente.)
23. O Senhor Deus o fez sair do jardim
de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra donde ele fora
tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins 62 diante do jardim de
delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem o caminho
que levava à árvore da vida.
15. Sob uma imagem pueril e às vezes
ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria oculta freqüentemente as maiores
verdades. Haverá fábula mais absurda, à primeira vista, do que a de Saturno, o
deus que devorava pedras, tomando-as por seus filhos?
Todavia, que de mais profundamente
filosófico e verdadeiro do que essa figura, se lhe procuramos o sentido moral!
Saturno é a personificação do tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é
o pai de tudo o que existe; mas, também, tudo se destrói com o tempo. Saturno a
devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos,
seus filhos, visto que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma
alegoria, escapa a semelhante destruição? Somente Júpiter, símbolo da
inteligência superior, do princípio espiritual, que é indestrutível.
É mesmo tão natural essa imagem, que,
na linguagem moderna, sem alusão à Fábula antiga, se diz, de uma coisa que
afinal se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo
tempo.
Toda a mitologia pagã, aliás, nada
mais é, em realidade, do que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas
e más, da Humanidade. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da
mais alta filosofia, como acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em
tomarem a forma pelo fundo.
16. Outro tanto se dá com a Gênese,
onde se tem que perceber grandes verdades morais debaixo das figuras materiais
que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como se, em nossas fábulas,
tomássemos em sentido literal as cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão personifica a Humanidade; sua
falta individualiza a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos
materiais a que ele não sabe resistir 63 .
A árvore, como árvore de vida, é o
emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da consciência, que o
homem adquire, do bem e do mal, pelo desenvolvimento da sua inteligência e do
livre-arbítrio, em virtude do qual ele escolhe entre um e outro. Assinala o
ponto em que a alma do homem, deixando de ser guiada unicamente pelos
instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na responsabilidade dos seus
atos.
O fruto da árvore simboliza o objeto
dos desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência;
concretiza, numa figura única, os motivos de arrastamento ao mal. O comer é
sucumbir à tentação. A árvore se ergue no meio do jardim de delícias, para
mostrar que a sedução está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se dá
preponderância aos gozos materiais, o homem se prende à Terra e se afasta do
seu destino espiritual 64 .
A morte de que ele é ameaçado, caso
infrinja a proibição que se lhe faz, é um aviso das conseqüências inevitáveis,
físicas e morais, decorrentes da violação das leis divinas que Deus lhe gravou
na consciência. É por demais evidente que aqui não se trata da morte corporal,
pois que, depois de cometida a falta, Adão ainda viveu longo tempo, mas, sim,
da morte espiritual, ou, por outras palavras, da perda dos bens que resultam do
adiantamento moral, perda figurada pela sua expulsão do jardim de delícias.
17. A serpente está longe hoje de ser
tida como tipo da astúcia. Ela, pois, entra aqui mais pela sua forma do que
pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos, que se insinuam
como a serpente e da qual, por essa razão, o homem, muitas vezes, não
desconfia. Ao demais, se a serpente, por haver enganado a mulher, é que foi
condenada a andar de rojo sobre o ventre, dever-se-á deduzir que antes esse
animal tinha pernas; mas, neste caso, não era serpente. Por que, então, se há
de impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, tão evidentes
alegorias, com o que, falseando-se-lhes o juízo, se faz que mais tarde venham a
considerar a Bíblia um tecido de fábulas absurdas?
Deve-se, além disso, notar que o termo
hebreu nâhâsch, traduzido por serpente, vem da raiz nâhâsch, que significa:
fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas, podendo, pois, significar:
encantador, adivinho. Com esta acepção, ele é encontrado na própria Gênese,
44:5 e 15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de Benjamim: “A
taça que roubaste é a em que meu Senhor bebe e de que se serve para adivinhar
(nâhâsch) 65 . — Ignoras que não há quem me iguale na ciência de adivinhar
(nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não há encantamentos (nâhâsch) em
Jacob, nem adivinhos em Israel.” Daí o haver a palavra nâhâsch tomado também a
significação de serpente, réptil que os encantadores tinham a pretensão de
encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A palavra nâhâsch só foi traduzida
por serpente na versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson, corromperam o
texto hebreu em muitos lugares — versão essa escrita em grego no segundo século
da era cristã. As suas inexatidões resultaram, sem dúvida, das modificações que
a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, porquanto o hebreu do
tempo de Moisés era uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto
quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos 66 .
É, pois, provável que Moisés tenha
apresentado como sedutor da mulher o desejo de conhecer as coisas ocultas,
suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que concorda com o sentido primitivo
da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro lado, com estas palavras: “Deus
sabe que, logo que houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e
sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que era cobiçável a árvore para
compreender (léaskil) e tomou do seu fruto.” Não se deve esquecer que Moisés
queria proscrever de entre os hebreus a arte da adivinhação praticada pelos
egípcios, como o prova o haver proibido que aqueles interrogassem os mortos e o
Espírito Piton. (O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo, cap. XII.)
18. A passagem que diz: “O Senhor
passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta vento brando”, é uma imagem
ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar; mas, nada tem
que surpreenda, se nos reportamos à idéia que os hebreus dos tempos primitivos
faziam de Deus. Para aquelas inteligências frustas, incapazes de conceber
abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta e eles tudo referiam à
Humanidade, como único ponto que conheciam. Moisés, por isso, lhes falava como
a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de que se trata, tem-se
personificada a Potência soberana, como os pagãos personificavam, em figuras
alegóricas, as virtudes, os vícios e as idéias abstratas. Mais tarde, os homens
despojaram da forma a idéia, do mesmo modo que a criança, tornada adulta,
procura o sentido moral dos contos com que a acalentaram. Deve-se, portanto,
considerar essa passagem como uma alegoria, figurando a Divindade a vigiar em
pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles
ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo o jardim, do lado donde vem o dia.”
19. Se a falta de Adão consistiu
literalmente em ter comido um fruto, ela não poderia, incontestavelmente, pela
sua natureza quase pueril, justificar o rigor com que foi punida. Não se
poderia tampouco admitir, racionalmente, que o fato seja qual geralmente o
supõem; se o fosse, teríamos Deus, considerando-o irremissível crime, a
condenar a sua própria obra, pois que ele criara o homem para a propagação. Se
Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no fruto da árvore e com ela
se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria a Humanidade e que
teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não criara Adão e Eva para
ficarem sós na Terra; a prova disso está nas próprias palavras que lhes dirige
logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam no paraíso terrestre:
“Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e
submetei-a ao vosso domínio.” (Gênese,1:28.)
Uma vez que a multiplicação era lei
já no paraíso terrenal, a expulsão deles dali não pode ter tido como causa o
fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição
foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o olhar de Deus e
que os levou a se ocultarem. Mas, essa própria vergonha é uma figura por
comparação: simboliza a confusão que todo culpado experimenta em presença de
quem foi por ele ofendido.
20. Qual, então, em definitiva, a
falta tão grande que mereceu acarretar a reprovação perpétua de todos os
descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi tratado tão severamente.
Nenhum teólogo a pode definir logicamente, porque todos, apegados à letra,
giraram dentro de um círculo vicioso.
Sabemos hoje que essa falta não é um
ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que compreende, sob um único fato
alegórico, o conjunto das prevaricações de que a Humanidade da Terra, ainda
imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem nisto: infração da lei de
Deus. Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este a Humanidade,
tem por símbolo um ato de desobediência.
21. Dizendo a Adão que ele tiraria da
terra a alimentação com o suor de seu rosto, Deus simboliza a obrigação do
trabalho; mas, por que fez do trabalho uma punição?
Que seria da inteligência do homem,
se ele não a desenvolvesse pelo trabalho? Que seria da Terra, se não fosse
fecundada, transformada, saneada pelo trabalho inteligente do homem?
Lá está dito (Gênese, 2:5 e 7): “O
Senhor Deus ainda não havia feito chover sobre a Terra e não havia nela homens
que a cultivassem. O Senhor formou então, do limo da terra, o homem.” Essas
palavras, aproximadas destas outras: Enchei a Terra , provam que o homem, desde
a sua origem, estava destinado a ocupar toda a Terra e a cultivá-la, assim
como, ao demais, que o paraíso não era um lugar circunscrito, a um canto do globo.
Se a cultura da terra houvesse de ser uma conseqüência da falta de Adão,
seguir-se-ia que, se Adão não tivesse pecado, a Terra permaneceria inculta e os
desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por que disse ele à mulher que, em
conseqüência de haver cometido a falta, pariria com dor? Como pode a dor do
parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo e quando está provado,
fisiologicamente que é uma necessidade? Como pode ser punição uma coisa que se
produz segundo as leis da Natureza? É o que os teólogos absolutamente ainda não
explicaram e que não poderão explicar, enquanto não abandonarem o ponto de
vista em que se colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras que
parecem tão contraditórias.
22. Notemos, antes de tudo, que se,
no momento de serem criados os dois, as almas de Adão e Eva tivessem vindo do
nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser bisonhos em todas as coisas;
haviam, pois, de ignorar o que é morrer. Estando sós na Terra, como estavam,
enquanto viveram no paraíso, não tinham assistido à morte de ninguém. Como,
então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus
lhes fazia? Como teria Eva podido compreender que parir com dor seria uma
punição, visto que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera
filhos e era a única mulher existente no mundo?
Nenhum sentido, portanto, deviam ter,
para Adão e Eva, as palavras de Deus. Mal surgidos do nada, eles não podiam
saber como nem por que haviam surgido dali; não podiam compreender nem o
Criador nem o motivo da proibição que lhes era feita. Sem nenhuma experiência
das condições da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento, o que
ainda mais incompreensível torna a terrível responsabilidade que Deus fez pesar
sobre eles e sobre a Humanidade inteira.
23. Entretanto, o que constitui para
a Teologia um beco sem saída, o Espiritismo o explica sem dificuldade e de
maneira racional, pela anterioridade da alma e pela pluralidade das
existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na vida do homem. Com
efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo logo se justifica:
Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres em estado de o
compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos trazem
aquisições anteriormente realizadas. Admitamos, ao demais, que hajam vivido em
um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho do
Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra a lei de
Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e exilados, por
punição, para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido a
um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus assistia razão para lhes
dizer: “No mundo onde, daqui em diante, ides viver, cultivareis a terra e dela
tirareis o alimento, com o suor da vossa fronte”; e, à mulher: “Parirás com
dor,” porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, nos 31 e seguintes.)
O paraíso terrestre, cujos vestígios
têm sido inutilmente procurados na Terra, era, por conseguinte, a figura do
mundo ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a raça dos Espíritos que ele
personifica. A expulsa do paraíso marca o momento em que esses Espíritos vieram
encarnar entre os habitantes do mundo terráqueo e a mudança de situação foi a
conseqüência da expulsão. O anjo que, empunhando uma espada flamejante, veda a
entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em que se acham os Espíritos dos
mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores, antes que o mereçam pela
sua depuração. (Veja-se, adiante, o cap. XIV, nos 8 e seguintes.)
24. Caim, depois do assassínio de Abel,
responde ao Senhor: A minha iniqüidade é extremamente grande, para que me possa
ser perdoada. — Vós me expulsais hoje de cima da Terra e eu me irei ocultar da
vossa face. Irei fugitivo e vagabundo pela Terra e qualquer um então que me
encontre matar-me-á.
— O Senhor lhe respondeu: “Não,
isto não se dará, porquanto severamente punido será quem matar Caim.” E o
Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o matassem os que viessem a
encontrá-lo.
Tendo-se retirado de diante do Senhor,
Caim ficou vagabundo pela Terra e habitou a região oriental do Éden. — Havendo
conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Henoch. Ele construiu (vaïehi bôné;
literalmente: estava construindo) uma cidade a que chamou Henoch (Enoquia) do
nome de seu
filho. (Gênese, 4:13 a 16.)
25. Se nos apegarmos à letra da
Gênese, eis as conseqüências a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós no mundo,
depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente tiveram os dois
filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se Caim retirado para outra região depois de
haver assassinado o irmão, não tornou a ver seus pais, que de novo ficaram isolados.
Só muito mais tarde, na idade de cento e trinta anos, foi que Adão teve um
terceiro filho, que se chamou Seth, depois de cujo nascimento, ele ainda viveu,
segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando, pois, Caim foi estabelecer-se
a leste do Éden, somente havia na Terra três pessoas: seu pai e sua mãe, e ele,
sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve mulher e um filho. Que mulher podia
ser essa e onde pudera ele desposá-la?
O texto hebreu diz: Ele estava construindo
uma cidade e não: ele construiu, o que indica ação presente e não ulterior.
Mas, uma cidade pressupõe a existência de habitantes, visto não ser de presumir
que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar
sozinho.
Dessa própria narrativa, portanto, se
tem de inferir que a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos
descendentes de Adão, que então se reduziam a um só: Caim.
Aliás, a presença de outros
habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e
vagabundo e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da resposta que Deus lhe
deu. Quem poderia ele temer que o matasse e que utilidade teria o sinal que
Deus lhe pôs para preservá-lo de ser morto, uma vez que ele a ninguém iria
encontrar? Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de Adão, é que
esses homens aí estavam antes dele, donde se deduz esta conseqüência, tirada do
texto mesmo da Gênese: Adão não é nem o primeiro, nem o único pai do gênero
humano. (Cap. XI, nº 34.) 67
26. Eram necessários os conhecimentos
que o Espiritismo ministrou acerca das relações do princípio espiritual com o
princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação em estado de
simplicidade e de ignorância, da sua união com o corpo, da sua indefinida marcha
progressiva através de sucessivas existências e através dos mundos, que são
outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca da sua gradual
libertação da influência da matéria, mediante o uso do livre-arbítrio, da causa
dos seus pendores bons ou maus e de suas aptidões, do fenômeno do nascimento e
da morte, da situação do Espírito na erraticidade e, finalmente, do futuro como
prêmio de seus esforços por se melhorar e da sua perseverança no bem, para que
se fizesse luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o homem sabe
doravante donde vem, para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Sabe
que tem nas mãos o seu futuro e que a duração do seu cativeiro neste mundo
unicamente dele depende. Despida da alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se
lhe apresenta grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador.
Considerada desse ponto de vista, ela confundirá a incredulidade e triunfará.”
Abaixo, transcrevemos as notas de rodapé:
“60 Em seguida a alguns versículos se acha a tradução literal do texto
hebreu, exprimindo mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico
ressalta assim mais claramente.
61 “Paraíso”, do latim paradisus , derivado do grego: paradeisos ,
jardim, vergel, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado na Gênese é
hagan , que tem a mesma significação.
62 Do hebreu cherub , keroub , boi, charab , lavrar; anjos do segundo
coro da primeira hierarquia, que eram representados com quatro asas, quatro
faces e pés de boi.
63 Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebréia haadam não
é um nome próprio, mas significa: o homem em geral, a Humanidade, o que destrói
toda a estrutura levantada sobre a personalidade de Adão.
64 Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só se
encontra nas versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as
mesmas acepções que em francês, sem determinação de espécie e pode ser tomado
em sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Para os
israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem muitas
acepções, cada um a entende como quer, contanto que a interpretação não seja
contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por malum, que se
aplica tanto à maçã, como a qualquer espécie de frutos. Deriva do grego melon , particípio do verbo melo , interessar,
cuidar, atrair.
65 Deste fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade
pelo copo d’água? (Revue Spirite , de junho do 1868, pág. 161.)
66 O termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negr
o, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da
adivinhação. Talvez também por isso é que as esfinges, de origem assíria, eram
representadas por uma figura de negro.
67 Não é nova esta idéia. La Peyrère, sábio teólogo do século dezessete,
em seu livro Preadamitas , escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do
texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a prova evidente de que a
Terra era habitada antes da vinda de Adão e essa opinião é hoje a de muitos
eclesiásticos esclarecidos.”
BIBLIOGRAFIA
KARDEC, Allan. A Gênese: Os
Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. FEB. Versão digital por: ERY
LOPES © 2007