quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

ADÃO REALMENTE EXISTIU E FOI EXPULSO DO PARAÍSO ?


 Fábio José Lourenço Bezerra

      O primeiro livro da Bíblia, chamado Gênesis, muitas vezes é interpretado de forma literal. Contudo, através dessa forma de interpretação, ele logo se mostra repleto de lacunas e contradições. Quando consideramos que este livro foi escrito em linguagem alegórica, como, aliás, o foram muitas obras da antiguidade, e dessa forma o interpretamos, logo vislumbramos o seu profundo significado.
        No capítulo XI da excelente obra “A Gênese”, Allan Kardec trata da figura bíblica de Adão à luz da Doutrina Espírita. Abaixo, transcrevemos parte do seu texto:

RAÇA ADÂMICA

38. De acordo com o ensino dos Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se quiserem, uma dessas colônias de Espíritos, vinda de outra esfera, que deu origem à raça simbolizada na pessoa de Adão e, por essa razão mesma, chamada raça adâmica . Quando ela aqui chegou, a Terra já estava povoada desde tempos imemoriais, como a América, quando aí chegaram os europeus.
Mais adiantada do que as que a tinham precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras.
A Gênese no-la mostra, desde os seus primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem haver passado aqui pela infância espiritual, o que não se dá com as raças primitivas, mas concorda com a opinião de que ela se compunha de Espíritos que já tinham progredido bastante. Tudo prova que a raça adâmica não é antiga na Terra e nada se opõe a que seja considerada como habitando este globo desde apenas alguns milhares de anos, o que não estaria em contradição nem com os fatos geológicos, nem com as observações antropológicas, antes tenderia a confirmá-las.”

       Já no capítulo XII da mesma obra, Kardec nos fala, com grande propriedade, da perda do paraíso. Inicialmente, transcreve o trecho bíblico correspondente. Vejamos:

PERDA DO PARAÍSO 60

13. — CAPÍTULO II. — 9. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara. — O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie de árvores belas ao olhar e cujo fruto era agradável ao paladar e, no meio do paraíso 61 , a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do mal. (Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra (min haadama) toda árvore bela de ver-se e boa para comer-se e a árvore da vida (vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e do mal.)
15. O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou em o paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. — 16. Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do paraíso. (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (hal haadam) dizendo: De toda árvore do jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto, logo que o comeres, morrerás com toda a certeza. (E da árvore do bem e do mal (oumehetz hadaat tob vara) não comerás, pois que no dia em que dela comeres morrerás.)

14. — CAPÍTULO III. — 1. Ora, a serpente era o mais fino de todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela disse à mulher: Por que vos ordenou Deus que não comêsseis os frutos de todas as árvores do paraíso? (E a serpente (nâhâsch) era mais astuta do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela disse à mulher (el haïscha): Terá dito Eloim: Não comereis de nenhuma árvore do jardim?) — 2. A mulher respondeu: Comemos dos frutos de todas as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente, do fruto (miperi) das árvores do jardim podemos comer.) — 3. Mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o perigo de morrer. — 4. A serpente replicou à mulher: Certamente não morrereis. — Mas, é que Deus sabe que, assim houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. 6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer; que era belo e agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu marido, que também comeu. (Ela viu, a mulher, que ela era boa, a árvore como alimento, e que era desejável a árvore para compreender (léaskil), e tomou de seu fruto, etc.) 8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de diante da sua face.9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás? — 10.Adão lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, essa a razão por que me escondi. — 11. O Senhor lhe retrucou: E como soubeste que estavas nu, senão porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que comêsseis? — 12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deste por companheira me apresentou o fruto dessa árvore e eu dele comi. — 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto.
14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da terra; rojar-te-ás sobre o ventre e comerás a terra por todos os dias de tua vida. — 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar.
16. Deus disse também à mulher: Afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará.
17. Disse em seguida a Adão: Por haveres escutado a voz de tua mulher e haveres comido do fruto da árvore de que te proibi que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda a tua vida. — 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a erva da terra. — 19. E comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra donde foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás.
20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher vestiduras de peles com que os cobriu. — 22. E disse: Eis aí Adão feito um de nós, sabendo o bem e o mal. Impeçamos, pois, agora, que ele deite a mão à árvore da vida, que também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente. (Ele disse, Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida (veata pen ischlachyado
velakach mehetz hachayim); comerá dela e viverá eternamente.)
23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra donde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins 62 diante do jardim de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem o caminho que levava à árvore da vida.

15. Sob uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria oculta freqüentemente as maiores verdades. Haverá fábula mais absurda, à primeira vista, do que a de Saturno, o deus que devorava pedras, tomando-as por seus filhos?
Todavia, que de mais profundamente filosófico e verdadeiro do que essa figura, se lhe procuramos o sentido moral! Saturno é a personificação do tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe; mas, também, tudo se destrói com o tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma alegoria, escapa a semelhante destruição? Somente Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio espiritual, que é indestrutível.
É mesmo tão natural essa imagem, que, na linguagem moderna, sem alusão à Fábula antiga, se diz, de uma coisa que afinal se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade, do que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas e más, da Humanidade. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, como acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em tomarem a forma pelo fundo.

16. Outro tanto se dá com a Gênese, onde se tem que perceber grandes verdades morais debaixo das figuras materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão personifica a Humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos materiais a que ele não sabe resistir 63 .
A árvore, como árvore de vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da consciência, que o homem adquire, do bem e do mal, pelo desenvolvimento da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a alma do homem, deixando de ser guiada unicamente pelos instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na responsabilidade dos seus atos.
O fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; concretiza, numa figura única, os motivos de arrastamento ao mal. O comer é sucumbir à tentação. A árvore se ergue no meio do jardim de delícias, para mostrar que a sedução está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se dá preponderância aos gozos materiais, o homem se prende à Terra e se afasta do seu destino espiritual 64 .
A morte de que ele é ameaçado, caso infrinja a proibição que se lhe faz, é um aviso das conseqüências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação das leis divinas que Deus lhe gravou na consciência. É por demais evidente que aqui não se trata da morte corporal, pois que, depois de cometida a falta, Adão ainda viveu longo tempo, mas, sim, da morte espiritual, ou, por outras palavras, da perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda figurada pela sua expulsão do jardim de delícias.

17. A serpente está longe hoje de ser tida como tipo da astúcia. Ela, pois, entra aqui mais pela sua forma do que pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos, que se insinuam como a serpente e da qual, por essa razão, o homem, muitas vezes, não desconfia. Ao demais, se a serpente, por haver enganado a mulher, é que foi condenada a andar de rojo sobre o ventre, dever-se-á deduzir que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, não era serpente. Por que, então, se há de impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, tão evidentes alegorias, com o que, falseando-se-lhes o juízo, se faz que mais tarde venham a considerar a Bíblia um tecido de fábulas absurdas?
Deve-se, além disso, notar que o termo hebreu nâhâsch, traduzido por serpente, vem da raiz nâhâsch, que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas, podendo, pois, significar: encantador, adivinho. Com esta acepção, ele é encontrado na própria Gênese, 44:5 e 15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de Benjamim: “A taça que roubaste é a em que meu Senhor bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch) 65 . — Ignoras que não há quem me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não há encantamentos (nâhâsch) em Jacob, nem adivinhos em Israel.” Daí o haver a palavra nâhâsch tomado também a significação de serpente, réptil que os encantadores tinham a pretensão de encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson, corromperam o texto hebreu em muitos lugares — versão essa escrita em grego no segundo século da era cristã. As suas inexatidões resultaram, sem dúvida, das modificações que a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, porquanto o hebreu do tempo de Moisés era uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos 66 .
É, pois, provável que Moisés tenha apresentado como sedutor da mulher o desejo de conhecer as coisas ocultas, suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que concorda com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro lado, com estas palavras: “Deus sabe que, logo que houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que era cobiçável a árvore para compreender (léaskil) e tomou do seu fruto.” Não se deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre os hebreus a arte da adivinhação praticada pelos egípcios, como o prova o haver proibido que aqueles interrogassem os mortos e o Espírito Piton. (O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo, cap. XII.)

18. A passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta vento brando”, é uma imagem ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar; mas, nada tem que surpreenda, se nos reportamos à idéia que os hebreus dos tempos primitivos faziam de Deus. Para aquelas inteligências frustas, incapazes de conceber abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta e eles tudo referiam à Humanidade, como único ponto que conheciam. Moisés, por isso, lhes falava como a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de que se trata, tem-se personificada a Potência soberana, como os pagãos personificavam, em figuras alegóricas, as virtudes, os vícios e as idéias abstratas. Mais tarde, os homens despojaram da forma a idéia, do mesmo modo que a criança, tornada adulta, procura o sentido moral dos contos com que a acalentaram. Deve-se, portanto, considerar essa passagem como uma alegoria, figurando a Divindade a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo o jardim, do lado donde vem o dia.”

19. Se a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido um fruto, ela não poderia, incontestavelmente, pela sua natureza quase pueril, justificar o rigor com que foi punida. Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o fato seja qual geralmente o supõem; se o fosse, teríamos Deus, considerando-o irremissível crime, a condenar a sua própria obra, pois que ele criara o homem para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no fruto da árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria a Humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra; a prova disso está nas próprias palavras que lhes dirige logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio.” (Gênese,1:28.)
Uma vez que a multiplicação era lei já no paraíso terrenal, a expulsão deles dali não pode ter tido como causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o olhar de Deus e que os levou a se ocultarem. Mas, essa própria vergonha é uma figura por comparação: simboliza a confusão que todo culpado experimenta em presença de quem foi por ele ofendido.

20. Qual, então, em definitiva, a falta tão grande que mereceu acarretar a reprovação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pode definir logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram dentro de um círculo vicioso.
Sabemos hoje que essa falta não é um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que compreende, sob um único fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a Humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem nisto: infração da lei de Deus. Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este a Humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.

21. Dizendo a Adão que ele tiraria da terra a alimentação com o suor de seu rosto, Deus simboliza a obrigação do trabalho; mas, por que fez do trabalho uma punição?
Que seria da inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse pelo trabalho? Que seria da Terra, se não fosse fecundada, transformada, saneada pelo trabalho inteligente do homem?
Lá está dito (Gênese, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda não havia feito chover sobre a Terra e não havia nela homens que a cultivassem. O Senhor formou então, do limo da terra, o homem.” Essas palavras, aproximadas destas outras: Enchei a Terra , provam que o homem, desde a sua origem, estava destinado a ocupar toda a Terra e a cultivá-la, assim como, ao demais, que o paraíso não era um lugar circunscrito, a um canto do globo. Se a cultura da terra houvesse de ser uma conseqüência da falta de Adão, seguir-se-ia que, se Adão não tivesse pecado, a Terra permaneceria inculta e os desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por que disse ele à mulher que, em conseqüência de haver cometido a falta, pariria com dor? Como pode a dor do parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo e quando está provado, fisiologicamente que é uma necessidade? Como pode ser punição uma coisa que se produz segundo as leis da Natureza? É o que os teólogos absolutamente ainda não explicaram e que não poderão explicar, enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras que parecem tão contraditórias.

22. Notemos, antes de tudo, que se, no momento de serem criados os dois, as almas de Adão e Eva tivessem vindo do nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser bisonhos em todas as coisas; haviam, pois, de ignorar o que é morrer. Estando sós na Terra, como estavam, enquanto viveram no paraíso, não tinham assistido à morte de ninguém. Como, então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como teria Eva podido compreender que parir com dor seria uma punição, visto que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera filhos e era a única mulher existente no mundo?
Nenhum sentido, portanto, deviam ter, para Adão e Eva, as palavras de Deus. Mal surgidos do nada, eles não podiam saber como nem por que haviam surgido dali; não podiam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição que lhes era feita. Sem nenhuma experiência das condições da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento, o que ainda mais incompreensível torna a terrível responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e sobre a Humanidade inteira.

23. Entretanto, o que constitui para a Teologia um beco sem saída, o Espiritismo o explica sem dificuldade e de maneira racional, pela anterioridade da alma e pela pluralidade das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo logo se justifica: Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres em estado de o compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos trazem aquisições anteriormente realizadas. Admitamos, ao demais, que hajam vivido em um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra a lei de Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e exilados, por punição, para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido a um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus assistia razão para lhes dizer: “No mundo onde, daqui em diante, ides viver, cultivareis a terra e dela tirareis o alimento, com o suor da vossa fronte”; e, à mulher: “Parirás com dor,” porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, nos 31 e seguintes.)
O paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente procurados na Terra, era, por conseguinte, a figura do mundo ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a raça dos Espíritos que ele personifica. A expulsa do paraíso marca o momento em que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do mundo terráqueo e a mudança de situação foi a conseqüência da expulsão. O anjo que, empunhando uma espada flamejante, veda a entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em que se acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores, antes que o mereçam pela sua depuração. (Veja-se, adiante, o cap. XIV, nos 8 e seguintes.)

24. Caim, depois do assassínio de Abel, responde ao Senhor: A minha iniqüidade é extremamente grande, para que me possa ser perdoada. — Vós me expulsais hoje de cima da Terra e eu me irei ocultar da vossa face. Irei fugitivo e vagabundo pela Terra e qualquer um então que me encontre matar-me-á.
— O Senhor lhe respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto severamente punido será quem matar Caim.” E o Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o matassem os que viessem a encontrá-lo.
Tendo-se retirado de diante do Senhor, Caim ficou vagabundo pela Terra e habitou a região oriental do Éden. — Havendo conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Henoch. Ele construiu (vaïehi bôné; literalmente: estava construindo) uma cidade a que chamou Henoch (Enoquia) do nome de seu
filho. (Gênese, 4:13 a 16.)

25. Se nos apegarmos à letra da Gênese, eis as conseqüências a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós no mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente tiveram os dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se Caim retirado para outra região depois de haver assassinado o irmão, não tornou a ver seus pais, que de novo ficaram isolados. Só muito mais tarde, na idade de cento e trinta anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou Seth, depois de cujo nascimento, ele ainda viveu, segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando, pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden, somente havia na Terra três pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve mulher e um filho. Que mulher podia ser essa e onde pudera ele desposá-la?
O texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade e não: ele construiu, o que indica ação presente e não ulterior. Mas, uma cidade pressupõe a existência de habitantes, visto não ser de presumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar sozinho.
Dessa própria narrativa, portanto, se tem de inferir que a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos descendentes de Adão, que então se reduziam a um só: Caim.
Aliás, a presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da resposta que Deus lhe deu. Quem poderia ele temer que o matasse e que utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo de ser morto, uma vez que ele a ninguém iria encontrar? Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, donde se deduz esta conseqüência, tirada do texto mesmo da Gênese: Adão não é nem o primeiro, nem o único pai do gênero humano. (Cap. XI, nº 34.) 67

26. Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo ministrou acerca das relações do princípio espiritual com o princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através de sucessivas existências e através dos mundos, que são outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca da sua gradual libertação da influência da matéria, mediante o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores bons ou maus e de suas aptidões, do fenômeno do nascimento e da morte, da situação do Espírito na erraticidade e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por se melhorar e da sua perseverança no bem, para que se fizesse luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o homem sabe doravante donde vem, para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Sabe que tem nas mãos o seu futuro e que a duração do seu cativeiro neste mundo unicamente dele depende. Despida da alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela confundirá a incredulidade e triunfará.”

          Abaixo, transcrevemos as notas de rodapé:

“60 Em seguida a alguns versículos se acha a tradução literal do texto hebreu, exprimindo mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico ressalta assim mais claramente.

61 “Paraíso”, do latim paradisus , derivado do grego: paradeisos , jardim, vergel, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado na Gênese é hagan , que tem a mesma significação.

62 Do hebreu cherub , keroub , boi, charab , lavrar; anjos do segundo coro da primeira hierarquia, que eram representados com quatro asas, quatro faces e pés de boi.

63 Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebréia haadam não é um nome próprio, mas significa: o homem em geral, a Humanidade, o que destrói toda a estrutura levantada sobre a personalidade de Adão.

64 Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só se encontra nas versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções que em francês, sem determinação de espécie e pode ser tomado em sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Para os israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem muitas acepções, cada um a entende como quer, contanto que a interpretação não seja contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por malum, que se aplica tanto à maçã, como a qualquer espécie de frutos. Deriva do grego melon , particípio do verbo melo , interessar, cuidar, atrair.

65 Deste fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade pelo copo d’água? (Revue Spirite , de junho do 1868, pág. 161.)

66 O termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negr o, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da adivinhação. Talvez também por isso é que as esfinges, de origem assíria, eram representadas por uma figura de negro.

67 Não é nova esta idéia. La Peyrère, sábio teólogo do século dezessete, em seu livro Preadamitas , escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão e essa opinião é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.”


BIBLIOGRAFIA

KARDEC, Allan. A Gênese: Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. FEB. Versão digital por: ERY LOPES © 2007

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