segunda-feira, 13 de outubro de 2008

OS SOFRIMENTOS


Fome na Somália

Fábio José Lourenço Bezerra

Ao refletirmos sobre a trajetória da humanidade, desde a época mais remota até os nossos dias, inevitavelmente nos depararemos com um fenômeno por vezes bastante intenso: a dor. Seja ela física ou moral, quem de nós, um dia, já não sentiu algum tipo de sofrimento? Uma intensa dor de dente ou de cabeça, ou a perda de um ente querido? Imagine a dor de uma mãe ao perder o seu filho, ou saber que, quando ainda muito novo, apresenta uma grave doença, como o câncer, ou vê-lo caminhar para a morte por falta do mínimo necessário para seu sustento (ver foto acima); Quando adquirimos uma doença grave, cujos sintomas são bastante desagradáveis e há risco de vida; A angústia por não termos o que ardentemente desejamos, ou perdemos aquilo a que somos muito apegados. Estes são apenas alguns poucos exemplos.
Ao pensarmos em sofrimento, e partindo do princípio de que o Universo foi criado e é regido por uma inteligência suprema - Deus -  e que Ele é todo-poderoso e soberanamente justo e bom,  como explicar que nós, suas criaturas, dotados de inteligência e sensibilidade, por muitas vezes tenhamos que passar por tanto sofrimento, em numerosos casos sem termos, aparentemente, nenhuma culpa? E porque uns passam por tanto sofrimento, enquanto outros quase nada sofrem?
A resposta para a pergunta acima se apresenta bastante simples: Deus não permitiria que as suas criaturas sofressem sem que isto tivesse alguma utilidade para elas, sem algum tipo de compensação futura.  Do contrário, teríamos que supor que, ou Deus não possui total controle de sua criação, não sendo capaz de, por vezes, impedir o sofrimento dos seus filhos (nesse caso, não seria todo-poderoso), ou permite, por sadismo, que alguém sofra sem motivo ou é indiferente a este sofrimento (aí, não poderia ser bom), ou que uns sofram mais do que os outros (assim, não poderia ser justo).
Conforme determinadas crenças, a humanidade sofre porque o primeiro homem pecou (referindo-se a Adão e a Doutrina do pecado original). Então seria justo, por exemplo, que nosso avô, nosso pai e tios, e até nós, fôssemos presos porque nosso bisavô cometeu um assassinato antes de ter filhos? Os descendentes pagando pelo erro de um parente distante? Onde estaria, então, a responsabilidade individual pelos próprios atos? Também acreditam que Deus é colérico e vingativo, pois impõe, àqueles que não obedecem aos preceitos destas crenças, o sofrimento eterno após a morte, sem direito ao arrependimento enquanto permanecem em um suplício sem fim. Nesse caso, Deus seria bem pior do que muitos seres humanos que passaram sobre a Terra, como Gandhi, São Francisco de Assis e Jesus, que pregaram o perdão incondicional das ofensas.
Logicamente, Deus sabe das nossas fraquezas, da nossa inexperiência como Espíritos. Conhece nossos mais íntimos pensamentos e tendências. Ele sabe que somos passíveis de erros, mas também sabe que nós podemos aprender através deles. Nossos erros nos mostram quem de fato somos, até onde podemos ir – nos dão o auto-conhecimento, permitindo que saibamos exatamente qual aspecto da nossa personalidade devemos mudar, para, daí em diante, acertar.

Vejamos o que diz Allan Kardec em sua obra “O Evangelho segundo o Espiritismo”, no Capítulo V, na parte intitulada “CAUSAS ATUAIS DAS AFLIÇÕES”:

“As vicissitudes da vida são de duas espécies, ou, se assim se quer, têm duas fontes bem diferentes que importa distinguir: umas têm sua causa na vida presente, outras fora dela.
Remontando à fonte dos males terrestres, se reconhecerá que muitos são a conseqüência natural do caráter e da conduta daqueles que os suportam.
Quantos homens tombam por suas próprias faltas! Quantos são vítimas de sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição!
Quantas pessoas arruinadas por falta de ordem, de perseverança, por má conduta e por não terem limitado seus desejos!
Quantas uniões infelizes porque são de interesse calculado ou de vaidade, com as quais o coração nada tem!
Quantas dissensões e querelas funestas se teria podido evitar com mais moderação e menos suscetibilidade.
Quantos males e enfermidades são a consequência da intemperança e dos excessos de todos os gêneros!
Quantos pais são infelizes com seus filhos, porque não combateram suas más tendências no princípio! Por fraqueza ou indiferença, deixaram se desenvolver neles os germes do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade que secam o coração; depois, mais tarde, recolhendo o que semearam, se espantam e se afligem pela sua falta de respeito e ingratidão.
Que todos aqueles que são atingidos no coração pelas vicissitudes e decepções da vida, interroguem friamente sua consciência; que remontem progressivamente à fonte dos males que os afligem, e verão se, o mais frequentemente, não podem dizer: Se eu tivesse, ou não tivesse, feito tal coisa eu não estaria em tal situação.
A quem, pois, culpar de todas as suas aflições senão a si mesmo? O homem é, assim, num grande número de casos, o artífice dos seus próprios infortúnios; mas, ao invés de o reconhecer, ele acha mais simples, menos humilhante para a sua vaidade, acusar a sorte, a Providência, a chance desfavorável, sua má estrela, enquanto que sua má estrela está na sua incúria.
Os males dessa natureza formam, seguramente, um notável contingente nas vicissitudes da vida; o homem os evitará quando trabalhar para o seu aprimoramento moral, tanto quanto para o seu aprimoramento intelectual."
"[...] Mas Deus quer o progresso de todas as suas criaturas; por isso, ele não deixa impune nenhum desvio do caminho reto; não há uma só falta, por pequena que seja, uma só infração à sua lei, que não tenha consequências forçadas e inevitáveis mais ou menos tristes; de onde se segue que, nas pequenas, como nas grandes coisas, o homem é sempre punido pelo que pecou. Os sofrimentos que lhe são a conseqüência, são para ele uma advertência de que errou; eles lhe dão a experiência fazendo-o sentir a diferença entre o bem e o mal, e a necessidade de se melhorar para evitar, no futuro, o que lhe foi uma fonte de desgostos; sem isso, não teria nenhum motivo para se emendar, e confiando na impunidade, retardaria seu adiantamento e, por conseguinte, sua felicidade futura.
Mas a experiência, algumas vezes, vem um pouco tarde; quando a vida foi dissipada e perturbada, as forças desgastadas, e quando o mal não tem mais remédio, então, o homem se pôe a dizer: Se no início da vida eu soubesse o que sei agora, quantas faltas teria evitado; se fosse recomeçar, eu faria tudo de outro modo; mas não há mais tempo! Como o obreiro preguiçoso, diz: Eu perdi minha jornada, ele também se diz: Eu perdi minha vida; mas da mesma forma que para o obreiro o Sol se ergue no dia seguinte e uma nova jornada começa, permitindo-lhe reparar o tempo perdido, para ele também, depois da noite do túmulo, brilhará o sol de uma nova vida, na qual poderá aproveitar a experiência do passado e suas boas resoluções para o futuro."

Na parte seguinte do mesmo Capítulo, denominada “CAUSAS ANTERIORES DAS AFLIÇÕES”, ele nos diz:

“Mas, se há males dos quais o homem é a causa primeira nesta vida, há outros, pelo menos na aparência, que lhe são completamente estranhos, e que parecem atingi-lo como por fatalidade. Tal é, por exemplo, a perda de seres queridos e a de arrimos de família; tais são, ainda, os acidentes que nenhuma providência poderia impedir; os reveses de fortuna que frustram todas as medidas de prudência; os flagelos naturais e as enfermidades de nascimento, sobretudo aquelas que tiram aos infelizes os meios de ganhar sua vida pelo trabalho, como as deformidades, a idiotia, o cretinismo, etc.
Aqueles que nascem em semelhantes condições, seguramente, nada fizeram nesta vida para merecer uma sorte tão triste, sem compensação, que não podiam evitar, impotentes para mudarem por si mesmos, e que os coloca á mercê da comiseração pública. Por que, pois, seres tão infelizes, ao passo que ao seu lado, sob o mesmo teto, na mesma família, outros são favorecidos sob todos os aspectos?
Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e não conheceram da vida senão o sofrimento? Problemas que nenhuma filosofia pôde ainda resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar, e que seria a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, na hipótese de ser a alma criada ao mesmo tempo que o corpo, e sua sorte estar irrevogavelmente fixada após uma estada de alguns instantes na Terra. Que fizeram, essas almas que acabam de sair das mãos do Criador, para suportar tantas misérias neste mundo, e merecer, no futuro, uma recompensa ou uma punição qualquer, quando não puderam fazer nem o bem nem o mal?
Entretanto, em virtude do axioma de que todo efeito tem uma causa, essas misérias são efeitos que devem ter uma causa e, desde que se admita um Deus justo, essa causa deve ser justa. Ora, a causa precedendo sempre o efeito, uma vez que não está na vida atual, deve ser anterior a ela, quer dizer, pertencer a uma existência precedente. Por outro lado, Deus não podendo punir pelo bem que se fez, nem pelo mal que não se fez, se somos punidos, é porque fizemos o mal; se não fizemos o mal nesta vida, o fizemos numa outra. É uma alternativa da qual é impossível escapar, e na qual a lógica diz de que lado está a justiça de Deus.”
“[...]Os sofrimentos por causas anteriores são, frequentemente, como das faltas atuais, a conseqüência natural da falta cometida; quer dizer, por uma justiça distributiva rigorosa, o homem suporta o que fez os outros suportarem; se foi duro e desumano, ele poderá ser, a seu turno, tratado duramente e com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em uma condição humilhante; se foi avarento, egoísta, ou se fez mau uso da sua fortuna, poderá ser privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer com os próprios filhos, etc.” (Ver o texto  Por Que Esquecemos Nossas Vidas Passadas?, neste blog).

E como se processa esse resgate de nossos erros cometidos em existências anteriores?    

Na pergunta Nº 258 de “O Livro dos Espíritos”, lemos: “Quando na erraticidade, antes de começar nova vida corporal, tem o Espírito consciência e previsão do que lhe sucederá no curso da vida terrena?”
Resposta: “Ele próprio escolhe o gênero de provas por que há de passar e nisso consiste o seu livre-arbítrio”.

“- Não é Deus, então, quem lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?”

Resposta: “Nada ocorre sem a permissão de Deus, porquanto foi Deus quem estabeleceu todas as leis que regem o Universo. Ide agora perguntar por que decretou ele esta lei e não aquela. Dando ao Espírito a liberdade de escolher, Deus lhe deixa a inteira responsabilidade de seus atos e das conseqüências que estes tiverem. Nada lhe estorva o futuro; abertos se lhe acham, assim, o caminho do bem, como o do mal. Se vier a sucumbir, restar-lhe-á a consolação de que nem tudo se lhe acabou e que a bondade divina lhe concede a liberdade de recomeçar o que foi mal feito. Demais, cumpre se distinga o que é obra da vontade de Deus do que é da do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós quem o criou e sim Deus. Vosso, porém, foi o desejo de a ele vos expordes, por haverdes visto nisso um meio de progredirdes, e Deus o permitiu”.

Na pergunta Nº 262, da mesma obra, lemos: “Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?”
Resposta: “Deus lhe supre o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Deixa-o, porém, pouco a pouco, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, senhor de proceder à escolha e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos bons Espíritos. A isso é que se pode chamar a queda do homem”.

Na pergunta Nº 264, lemos: “Que é o que dirige o Espírito na escolha das provas que queira sofrer?”
Resposta: “Ele escolhe, de acordo com a natureza de suas faltas, as que o levem à expiação destas e a progredir mais depressa. Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem; outros preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar, pelas paixões inferiores que uma e outros desenvolvem; muitos, finalmente, se decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contacto com o vício”.

E na pergunta Nº 266, lemos: “Não parece natural que se escolham as provas menos dolorosas?” e a resposta: “ Pode parecer-vos a vós; ao Espírito, não. Logo que este se desliga da matéria, cessa toda ilusão e outra passa a ser a sua maneira de pensar”.

Comentário de Kardec: “Sob a influência das idéias carnais, o homem, na Terra, só vê das provas o lado penoso. Tal a razão de lhe parecer natural sejam escolhidas as que, do seu ponto de vista, podem coexistir com os gozos materiais. Na vida espiritual, porém, compara esses gozos fugazes e grosseiros com a inalterável felicidade que lhe é dado entrever e desde logo nenhuma impressão mais lhe causam os passageiros sofrimentos terrenos. Assim, pois, o espírito pode escolher prova muito rude e, conseguintemente, uma angustiada existência, na esperança de alcançar depressa um estado melhor, como o doente escolhe muitas vezes o remédio mais desagradável para se curar de pronto. Aquele que intenta ligar seu nome à descoberta de um país desconhecido não procura trilhar estrada florida. Conhece os perigos a que se arrisca, mas também sabe que o espera a glória, se lograr bom êxito”.

De duas, uma: ou o Espírito, quando pouco experiente, e portanto incapaz de exercer o livre-arbítrio, é conduzido pela espiritualidade para uma encarnação com as características necessárias à sua evolução, conforme o tipo e o grau de suas imperfeições, ou o Espírito, já com um determinado grau de experiência, é orientado, no mundo espiritual, pelos bons Espíritos, acerca das experiências que lhe são necessárias, cabendo a ele aceitá-las ou não.
As provas escolhidas, muitas vezes, são bastante dolorosas, contudo, quase nada são quando comparadas à possibilidade de obtenção da felicidade que gozam os Espíritos Superiores, daí o motivo da escolha. Além disso, podemos não sentir enquanto estamos no corpo físico, mas, após a morte, temos nossa sensibilidade bastante aumentada, e é outro o nosso ponto de vista. Nossas imperfeições, quando estamos no mundo espiritual, são, para nós, como nódoas, manchas em nosso Espírito, que repercutem em nosso corpo espiritual de diversas formas. O sentimento de culpa, advindo de nossos erros, castiga nossa consciência (muitas vezes de forma bastante violenta), que necessita, para seu alívio, reparar o erro cometido. Esta reparação é feita, muitas vezes, em encarnações onde nos comprometemos a fazer o bem, ajudando aqueles a quem fizemos mal, ou a outras pessoas, ou voltamos para sofrer da mesma forma que aqueles a quem prejudicamos. Tal mecanismo não possui caráter de castigo, mas tão somente educativo, para modificar as disposições íntimas do Espírito, que, sabendo aproveitar as reflexões aí proporcionadas, avança muito na sua evolução moral. Verificamos, muitas vezes, nas respostas dos Espíritos, acima, as palavras castigo e punição. Contudo, estas palavras foram empregadas por eles para adequar seus ensinamentos à época em que foram escritos (meados do século XIX).
Cabe a todos nós, Espíritos encarnados, viver a vida com fé em Deus, nos resignando diante daqueles sofrimentos que não podemos evitar, sem deixarmos, contudo, de fazer a nossa parte, ao procurar aliviá-los, na medida do possível.

Como sempre diz o presidente da Federação Espírita Pernambucana, o Sr.Valdeck Atademo: “Confiemos em Deus, Vivamos com Jesus”.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

1 KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 36. ed. Rio de Janeiro: FEB, [1990].
2 _____________. O Livro dos Espíritos: princípios da doutrina espírita. 76. ed. Rio de Janeiro: FEB, [1995].
3______________. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 3.ed. São Paulo: Petit, [1997].